Homens buscam romance, e mulheres buscam erotismo na guerra dos sexos do rap

Enquanto artistas como Xamã, líder no Spotify, exploram o coração, estrelas como N.I.N.A cantam os prazeres carnais

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São Paulo

Antes de embalar um sem número de dancinhas nas redes sociais e chegar ao topo das paradas em 2022, o rapper Xamã tentou duas vezes. O hit "Malvadão 3", música com 125 milhões de visualizações somente no YouTube, é a mais recente peça de um tríptico que começou em 2017 com a faixa "Malvadão".

A letra, que versa sobre uma noitada com duas mulheres, dá lugar a um clima apaixonado em "Malvadão 2", de 2019. Amor mesmo só viria no mais recente lançamento. Na faixa, Xamã louva sua musa, se lembra de momentos vívidos a dois e pede para que a amada não machuque o coração dele.

homem moreno de bigode e cheio de joias
O rapper Xamã, cujo 'Malvadão 3' ocupou o topo das paradas do Spotify no início de 2022 - Reprodução/Facebook

Nomes em ascensão no rap nacional, as gêmeas Tasha e Tracie parecem não se importar com os corações arrasados —ao menos é o que deixam ver algumas de suas letras. Em "Diretoria", elas se autodenominam malvadas ao cantar o dia a dia de uma jovem mulher de favela, com direito a abordar o sexo sob uma perspectiva de dominação feminina.

duas jovens mulheres negras muito semelhantes com cabelos encaracolados posam entra as poltronas do interior de um carro
As gêmeas Tasha e Tracie, nomes em ascensão no rap nacional - @stefflima/Instagram/Reprodução

Xamã e Tasha e Tracie não estão sós. Ambos representam formas de falar do amor que vêm ganhando peso na cena e vão além do sucesso. No caso das rappers, as rimas de sexo quebram paradigmas de gênero em um movimento global no hip hop. Já para os rappers, o imaginário romântico traz uma diversidade de masculinidades ao jogo, de corpo e alma.

"Todo brasileiro é apaixonado, ele sofre, canta, tem uma musa", diz Xamã. "A gente está num período de romancistas no rap, em que transformam a musa em música, aquele amor conturbado, sofrido."

Entre as músicas mais ouvidas do rapper há uma colaboração com Ludmilla que versa sobre o agridoce término de uma relação, um R&B lascivo com a cantora Agnes Nunes e uma faixa intitulada "Luxúria". As diferentes facetas do romance lírico são o leitmotiv de Xamã, atualmente o cantor brasileiro mais ouvido no Spotify —ele quebrou a hegemonia do sertanejo nas paradas da plataforma em fevereiro último.

Para o rapper, falar de amores é também questionar duas ideias historicamente associadas ao hip hop: o estereótipo machista que envolve o rap e o olhar enviesado de parte de público e crítica, que vê essa música como algo menor —atacando por vezes com a própria carta do machismo, sem considerar recortes sociais ou outros gêneros musicais brasileiros.

"Eu gosto de desafiar essas questões porque talvez um cara que escute meu som seja machista, mas ele vai se desconstruindo. Às vezes uso um saião gigante, às vezes estou mais roqueiro, enfim, é uma forma de quebrar convicções", diz Xamã. "E a gente também pega referências e mistura tudo, fala de Nietzsche, Kubrick, e se perguntam: 'ué, esse cara conhece isso?'"

Quem também espanta pelas suas referências é o rapper MD Chefe. Um dos novos nomes a estourar no hip hop nacional, o artista carioca rima amiúde sobre parte do universo feminino. Em "Tifanny", cujo clipe tem mais de 70 milhões de visualizações no YouTube, MD oferece de um tudo a sua amada enquanto exalta seu gosto por perfumes caros e cuidados estéticos— como unha de acrigel e marquinha de sol feita à base de fita, hits do verão carioca.

"A 'Tifanny' é um reflexo do MD Chefe", diz o artista. "Eu não sou um personagem e essa música é um reflexo de como procuro, na minha vida pessoal, tratar as mulheres. Essa é uma música de detalhes, e não vejo outra faixa que especifique tanto o gosto feminino quanto essa."

Tal esmero ao som de trap —um dos dezenas de subgêneros do rap— tem até um nome, segundo o próprio MD Chefe. "É o trap que eu fiz 'pras tchuca', e o sucesso vem de trazer essa nova perspectiva para a cena, de ver e falar coisas que não foram ditas", diz o rapper. "Meu próximo projeto é a 'Tchuchuca Minitape', um projeto curto, com artistas mulheres e voltado a faixas que trazem mais sobre como o MD gosta de tratar as mulheres."

homem negro de óculos e black veste camiseta preta e posa diante de fundo branco
Retrato do rapper MD Chefe - Divulgação

Enquanto refinar o romantismo é a nova dos rappers, as rappers atacam pelo lado oposto. Nomes como a carioca N.I.N.A vem tomando espaço com letras em que o amor responde aos anseios do sexo sob a lente feminina —muitas vezes, de maneira explícita. "Falar da forma que eu falo também é falar de amor", diz a rimadora carioca.

Na música "Posturada", por exemplo, N.I.N.A despreza o companheiro do passado afirmando que ele vai sonhar com seu sexo enquanto transa com outra mulher. Em "Contramão", ela canta: "vamos gozar que amanhã já é segunda".

"Para eu dialogar com as pessoas que vieram de onde eu vim, eu tenho de cantar o amor de várias formas, e amor é autoestima, sexo também está ligado a autoestima —a parte da conquista, da autoafirmação", conta N.I.N.A. "Esse tipo de coisa é algo que os caras precisam escutar, isso causa choque e acaba fazendo eles voltarem pra minha música."

Há ao menos duas décadas essa postura incisiva de mulheres quanto ao sexo vem sendo explorada por um primo do rap, o funk. Artistas como MC Katia e Deize Tigrona foram pioneiras ao escrever e cantar abertamente sobre erotismo. Em 2004, a cantora Tati Quebra Barraco fez sucesso com "Dako é Bom", música com clara alusão ao sexo anal.

"Quando se faz o recorte de raça e gênero, posicionamentos como o da Nina são fundamentais na música", explica Tamiris Coutinho, autora do livro "Cai de Boca no Meu B*c3t@o: O Funk como Potência do Empoderamento Feminino". "Quando mulheres fazem isso, seja no funk ou no rap, vemos uma maneira de falar da experiência de vida, de mostrar que o eu-lírico pode falar de sexualidade, algo que também é pertinente à mulher."

mulher negra de tranças e gargantilha e argolas vermelhas diante de fundo amarelado
Retrato da rapper Nina do Porte - Divulgação

Para a pesquisadora, o sexo cantado pelas rappers aponta uma aproximação maior entre funk e rap ao passo que mostra a complexidade do tema. "Já houve um distanciamento da cultura do rap e da cultura do funk, muito por acharem que o funk não tinha essa visão politizada. Mas hoje tem uma união maior entre rap e funk, e acho que o rap começou a adquirir essas pautas também", diz Coutinho. "Além disso, as pessoas têm a tendência de diminuir a putaria a algo que não tem valor, mas não é assim: é uma forma de manifestar coisas mais profundas".

Esse movimento no rap nacional também espelha uma tendência observada em outras partes do mundo no hip hop. Duas das maiores rappers da atualidade, Cardi B e Megan Thee Stallion chocaram as alas puritanas dos Estados Unidos em 2020 com a música "WAP". No clipe, com quase meio bilhão de visualizações no YouTube, ambas dançam ao som da letra que tece um cardápio vasto de analogias e metáforas sobre lubrificação vaginal.

Assim como no caso das norte-americanas, as rimas explícitas acompanham um expressivo sucesso de mulheres no hip hop nacional. Além do duo Tasha e Tracie e de N.I.N.A, artistas como Ebony, Nic Dias e Slipmami vêm se destacando na cena com canetas afiadas para a sexualidade —um caminho que não vem de mão beijada.

​"Já ouvi muito cara dizer que minha letra é muito pesada, tem gente que diz que minha letra não é comercial e não vai chegar a vários lugares, só que já vi muito homem cantando letra assim e ninguém fala nada", diz N.I.N.A, que cita a rapper Nicki Minaj como uma de suas inspirações. "Mas também vejo que, conforme os homens vão vendo meu trabalho, eles vão aceitando um pouquinho mais."

Se mulheres no rap brasileiro não são novidade —embora rappers como Negra Li, Dina Di e Cris SNJ tenham sido mais exceção do que a norma entre os anos 1990 e 2000—, o amor romântico também já deu as caras no hip hop nacional. Uma das faixas mais conhecidas do aclamado álbum "Babylon By Gus Vol. 1", do carioca Black Alien, é a apaixonada "Como Eu Te Quero". Acostumado a líricas sobre violência ou questões sociais, Ndee Naldinho amoleceu a voz em "Aquela Mina É Firmeza", de 2000.

Porém, assim como o sucesso das minas caminha em paralelo à ascensão das rimas sobre sexo, a atual popularidade dos rappers nas rádios e plataformas de streaming também deve um bocado aos amores.

A série "Poesia Acústica", um dos principais projetos do hip hop brasileiro atualmente, é prova disso. Lançado em 2017 pelo selo carioca Pineapple, a série tem uma fórmula simples: um punhado de artistas rima sobre uma mesma batida, normalmente protagonizada por violões e linhas melódicas de piano. O cenário dos clipes, sempre em formato de reunião descontraída e intimista, combina com o tom adocicado das letras.

Hoje, o projeto acumula mais de um bilhão de reproduções nas plataformas de música, cerca de dois bilhões de visualizações no YouTube e participações com os principais nomes do rap e do funk brasileiro. O carioca Xamã é um dos astros da série, e não nega a facilidade que tem com as letras que mesclam candura e vilania, um romance e um lance.

"Sempre tem alguém que quer ouvir falar de amor, é algo sensorial", reflete Xamã. "E o amor pode ser muito, é fácil de transmutar esse sentimento. Quando a gente fala de amor, a gente toca inúmeras coisas."

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