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Margaret Atwood satiriza distopias em 'O Coração É o Último a Morrer'

Autora de 'O Conto da Aia' joga com o absurdo e o ridículo para criar trama viciante, sem deixar de fazer críticas mordazes

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O Coração É o Último a Morrer

  • Preço R$ 69,90 (424 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Margaret Atwood
  • Editora Rocco
  • Tradução Geni Hirata

A imperatriz de todas as distopias está de volta. Quando o objetivo é criar narrativas que combinem avanço tecnológico e colapso social, Margaret Atwood, 82, reina quase absoluta. "O Coração É o Último a Morrer", romance da autora que está chegando agora ao Brasil, mostra que a imaginação dela continua ferina, apesar da repetição de alguns elementos de suas obras anteriores.

Dos cenários pós-apocalípticos esboçados até hoje pela escritora canadense, o descrito no livro talvez seja o mais pé no chão, ainda que esteja longe de ser reconfortante. Em algum momento do século 21, uma recessão gigantesca se abate sobre os EUA —e talvez sobre o resto do mundo—, fazendo com que metade da população fique sem emprego na costa leste. Quem não tem dinheiro suficiente para fugir rumo à Califórnia e montar uma empresa de tecnologia por lá se vira como pode, "morando" dentro de carros em estacionamentos, fazendo bicos, saqueando as lojas que sobraram —ou outros carros.

Autora canadense Margaret Atwood durante uma entrevista coletiva na ocasião do lançamento do seu livro 'Os Testamentos' - Tolga Akmen - 10.set.19/AFP

Anúncios de TV, no entanto, parecem trazer um lampejo de esperança. "Lembra-se de como era a sua vida? Antes do mundo confiável que conhecíamos ser destruído?", diz a propaganda. "No Projeto Positron, na cidade de Consilience, as coisas podem ser assim novamente. Oferecemos não apenas pleno emprego, mas também proteção contra os elementos perigosos que afligem tantos nesse momento."

Charmaine e Stan, um casal jovem forçado a transformar seu carro em barraco, resolve apostar nessa possibilidade aparentemente milagrosa. Admitidos ao processo de seleção, eles descobrem que "Consilience" na verdade é uma fusão de "condenação" e "resiliência" –"condenação" no sentido jurídico mesmo.

capa de livro
Capa do livro 'O Coração É o Último a Morrer', da escritora Margaret Atwood - Divulgação/Rocco

Acontece que os habitantes da cidade planejada passam metade do tempo na cadeia e metade do tempo fora dela, dividindo sua casa com outros moradores, os quais ficam na residência enquanto eles estão na prisão e vice-versa.

Consilience, dizem seus idealizadores, é quase autossuficiente no que diz respeito à produção de alimentos (criando galinhas, porcos e vacas, plantando etc.) e conta com uma pequena produção manufatureira para "exportação". Ninguém passa fome, todo mundo tem o que vestir e casas decentes onde morar –e ninguém sai. Nunca mais –se você topou morar na comunidade, é ali que vai passar o resto dos seus dias.

Sem a menor perspectiva no mundo fora da cidade planejada, Charmaine e Stan topam, e é lógico que um acordo como aquele, bom demais para ser verdade, revela-se apenas a superfície de algo que, no fundo, é bem mais sinistro.

Tragicomicamente sinistro, para ser exato. Sim, não há dúvida de que o romance reelabora algumas das obsessões distópicas de Atwood, como a busca pelo controle da sexualidade feminina ou a arrogância prometeica da biotecnologia —temas centrais de "O Conto da Aia" e da trilogia "MaddAddão", respectivamente.

Às vezes, a impressão do leitor é que o casal de protagonistas habita um prólogo ou uma realidade alternativa dos livros anteriores. Mas o que era tragédia e ironia mordaz nos outros romances se transforma em farsa, quase escracho, em "O Coração É o Último a Morrer".

A habilidade com que a autora produz esse efeito depende muito dos detalhes esdrúxulos do cenário —como a temática anos 1950 que os criadores de Consilience imprimiram à cidade, incluindo o fato de que só é possível dirigir lambretas e acessar filmes e músicas dessa década no loca. A desculpa é que essa teria sido a década na qual a porcentagem de americanos que se sentiam satisfeitos com a própria vida atingiu recordes históricos.

Há também a sucessão de coincidências, encontros e desencontros do mesmo pequeno elenco de personagens, que poderia ser confundida com simples falta de verossimilhança se não ficasse claro que a intenção de Atwood é justamente jogar com o absurdo e o ridículo. Ao menos à primeira vista, as personalidades de Stan e Charmaine, tipos meio tapados e com dificuldade para refletir sobre as implicações do que acontece com eles, confirmam esse lado farsesco.

O curioso é que, usando essas peças, a escritora produziu uma trama rocambolesca, de leitura viciante, sem sacrificar em nada sua crítica mordaz às tendências autodestrutivas da vida que andamos levando neste século.

A flecha de Atwood acerta esse alvo de modo particularmente claro quando o leitor se dá conta da pouca diferença que existe entre a picaretagem desumana dos criadores de Projeto Positron e as coisas que costumam pregar os bilionários das empresas de tecnologia. Ninguém pode dizer que ela não avisou.

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