Descrição de chapéu Livros Entrevista da 2ª

Margaret Atwood, autora de 'O Conto da Aia', acredita no impeachment de Bolsonaro

Escritora diz que bolsonaristas são guiados pelo medo, compara cancelamento a totalitarismo e rebate críticas raciais a sua obra

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A escritora Margaret Atwood

A escritora canadense Margaret Atwood em Toronto, no Canadá, em 2019 Arden Wray/The New York Times

São Paulo

Margaret Atwood faz muitas perguntas sobre Jair Bolsonaro ao longo da entrevista de cerca de 40 minutos. Ao ouvir que o impeachment se torna difícil porque o presidente controla a maioria da Câmara, ela retruca.

“Ele acha que controla”, diz a autora canadense. “Quando uma figura assim começa a parecer fraca, as pessoas fogem para as montanhas. Dizem ‘ah, eu não gostava tanto assim dele’. Muitos seguem pessoas [como Bolsonaro] porque têm medo do que aconteceria com elas se não seguissem.”

Aqui está uma escritora que pensou muito sobre figuras autoritárias, tendo criado uma das principais referências sobre os horrores de uma autocracia no imaginário recente —“O Conto da Aia”, romance de 1985 de tintas feministas que virou série de sucesso na TV e ganhou uma continuação em “Os Testamentos”, vencedor do Booker em 2019.

Atwood falou espontaneamente sobre totalitarismo algumas vezes durante a conversa, inclusive quando questionada sobre a carta publicada no ano passado na revista Harper's.

Na ocasião, ela e mais de 150 intelectuais e escritores, incluindo Noam Chomsky, J.K. Rowling e Gloria Steinem, criticaram o clima de intolerância no debate público, o que ficou marcado como uma reação organizada à chamada cultura do cancelamento.

“A forma de combater ideias ruins é pela exposição, debate e persuasão, não tentando silenciá-las”, afirmava a carta. “O poder de acusar é um poder. E, como qualquer poder, pode ser corrompido”, diz agora Atwood, que fará uma palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento em 27 de outubro.

A senhora já disse ter uma regra pessoal, ao criar 'O Conto da Aia', de que tudo ali deveria ter precedentes históricos. Sua ideia sobre o desfecho de Gilead em 'Os Testamentos' também vem da história?

Sim, talvez seja um pouco otimista [risos]. Nós não vemos o fim de Gilead, nem o começo do fim, vemos o fim do começo.

Há dois polos opostos em nossos desejos. Um deles é ter ordem, para saber quais são as regras, de outro modo é só caos. Se há muito caos, qualquer um que diga que consegue resolver tudo, “é só fazer o que eu mando”, vai ter um certo número de seguidores. As pessoas não conseguem viver em caos contínuo.

Então queremos isso, mas também não queremos claustrofobia, constrição, viver com medo do Grande Irmão.

Caos contínuo soa muito como o que estamos vivendo no Brasil, com um presidente que faz ameaças quase diárias à democracia.

Isso é mais autoritarismo que caos contínuo. As pessoas provavelmente o elegeram porque sentiam que a coisa estava caótica demais e ele ia pôr ordem. São figuras que se veem como reis.

Uma crítica que foi dirigida a 'O Conto da Aia' é que o livro se inspira numa opressão que mulheres negras sofreram nos Estados Unidos na escravidão, como estupro sistemático, desumanização e separação dos filhos, e a transforma em uma distopia para mulheres brancas. 

É um regime de supremacia branca. Então todas as pessoas negras identificáveis pelo regime foram colocadas em terras segregadas, que foi o que aconteceu durante o apartheid na África do Sul.

Esse tipo de tratamento de pessoas sob a escravidão não é limitado aos Estados Unidos dos séculos 17 a 19. Vem de muito antes, a escravidão foi a instituição que viabilizou a existência da Grécia e de Roma, por exemplo. Todas eram dependentes de escravos.

É a mesma ideia de haver uma classe oprimida, na qual você instila a ideia de que são seres inferiores. É algo antigo. A diferença, nos Estados Unidos, é que isso estava ligado a raça. Enquanto no mundo antigo não era assim.

Os críticos argumentam que a senhora lida com o tema racial rápido demais no romance. 

É isso que um regime de supremacia branca faria.

Quando você escreve um romance do ponto de vista de uma única pessoa, pode apenas incluir na narração o que essa pessoa poderia saber. Em Gilead, as mulheres não podiam ler livros, jornais ou revistas, a televisão era controlada. Onde [Offred, a protagonista] conseguiria essa informação? Isso era um problema geral para mim no livro. O que ela saberia?

A senhora publica livros há cerca de 60 anos, e o mercado editorial foi historicamente dominado por homens...

Isso era muito tempo atrás [estica o “muito”].

Fico pensando se a senhora testemunhou uma melhora significativa nesse sentido. 

Eu diria uma mudança significativa. Nos anos 1960, eram basicamente homens tomando as decisões. Eu mesma não sentia que estava sendo discriminada por ser mulher, porque os editores vão publicar o que acham que vai vender. No lado da crítica, havia coisas esquisitas, mas não no da edição.

É verdade que os editores que me diziam sim ou não eram homens, mas quem editava o livro de fato eram mulheres. Nos anos 1970, surgiram editoras em que só mulheres tomavam as decisões.

O dono da minha editora no Canadá nos anos 1960 era homem, hoje é mulher. Mas isso quer dizer que publicam livros diferentes? Sim e não. Ainda é verdade que editores publicam os livros que acham que conseguem vender.

Então se vê também uma mudança no leitorado. Será que foi longe demais para o lado oposto? Os leitores homens estão mal servidos? Deixo isso para você pensar. Quão balanceado está o cenário agora? E, se houver um desequilíbrio, é porque os homens deixaram de ler?

Os escritores grandes nos anos 1950 e 1960 eram homens. Valorizavam histórias de guerra e examinações sociais como as de John Updike e Philip Roth. A mudança veio na década de 1970, em parte por causa do movimento de mulheres dizendo “queremos ler histórias em que mulheres não são só donas de casa, ou, se forem, queremos saber como isso é de verdade”.

E hoje, com que se preocupam os grandes romances? 

Eu não sei [risos]. Outra coisa que aconteceu foi uma mudança em termos de gênero literário.

Antes havia literatura séria desse lado e todo o resto daquele outro lado. Esse resto era tratado como algo sub-literário, algo com que nunca concordei. Mas era um truísmo na metade do século 20, e isso agora mudou —as pessoas se sentem livres para explorar gêneros como fantasia e ficção científica, sem medo de serem descartadas.

Outro assunto que queria trazer é a famosa 'Carta sobre Justiça e Debate Aberto', publicada na revista Harper's, da qual a senhora foi uma das signatárias... 

Eu nem entendo por que isso é um assunto. O que você quer em vez de justiça e debate aberto, linchamentos?

Por que sentiu a necessidade de assinar o manifesto? 

Por que eu não assinaria? Queremos democracia ou não? Se não quer justiça e debate aberto, o que quer no lugar? Seguir a linha do partido, queimar bruxas? O que tem em mente como alternativa?

E, aliás, o poder de acusar é um poder. E, como qualquer poder, pode ser corrompido.

Houve reações de pessoas que acusaram os autores da carta de escrever de uma posição privilegiada e lidar mal com críticas a eles mesmos. 

E daí? Isso não é um argumento, é uma crítica pessoal.

É dizer “mimimi, você é uma pessoa ruim”. Não importa se você é ou não uma pessoa má, estamos falando de processos, regulações se quiser, e contenção de abuso de poder. A menos que se admita que o poder de acusar é um poder, não iremos a lugar nenhum.

A senhora já se sentiu pessoalmente constrangida por um clima de intolerância no debate público, algo que tenha levado à autocensura? 

Todo mundo sente isso em algum nível. Somos seres humanos e, como todo ser vivo, estamos de olho nas nossas chances. Estamos sempre fazendo cálculos. É totalitarismo quando ninguém se atreve a fazer esses cálculos publicamente —ou você vai para o exílio, ou toma um tiro na cabeça, ou é mandado para o gulag.

É uma das marcas do totalitarismo quando ninguém ousa desafiar abertamente o que está acontecendo. Nas simulações de processo do stalinismo, os acusados nem sabiam do que eram acusados. “O que eu deveria dizer que fiz?”

Sente que estamos num clima especialmente intolerante? 

Estávamos, talvez menos agora. Essas coisas vão ao extremo, as pessoas olham esse extremo e dizem "calma lá, não era isso que queríamos". É sempre um pêndulo. O perigo é que se vá ao outro extremo, e a história será a mesma, mas do lado oposto.

Como quebrar o ciclo de abuso de poder seguido de vingança? Deve haver três elementos nessa equação. Verdade, reparação —o que fazemos para consertar os malfeitos?— e então reconciliação.

Mas é simplesmente muito gratificante cortar a cabeça de alguém que cortou a cabeça de alguém de quem você gostava. Infelizmente.

Seus livros são impregnados com a ideia de que escrever é um ato de esperança. Até em 'O Assassino Cego', que está sendo reeditado agora no Brasil, há passagens em que a narradora reflete sobre quem estará lendo. Todo livro é um ato de esperança? 

Sempre é. Mesmo se for um livro que desaprovamos totalmente. “Mein Kampf”, por exemplo, é um livro, então não é bom dizer que livros são universalmente coisas maravilhosas que espalham alegria.

Mesmo se você for uma pessoa triste, acho que precisa ser motivado pela esperança, porque escrever é sempre viajar no tempo. Você espera que a jornada em que está embarcando agora, na sua página, vá viajar pelo tempo e chegar às mãos de outra pessoa mais tarde —e essa pessoa vai ser a leitora certa para esse livro. Muita esperança aí.

Margaret Atwood, 81
Nascida na capital canadense Ottawa e uma das principais escritoras em atividade, tem entre seus mais de 50 livros publicados a distopia ‘O Conto da Aia’, transformada na premiada série ‘The Handmaid’s Tale’, da Hulu, e sua sequência ‘Os Testamentos’, que venceu o prêmio Booker em 2019. Suas obras incluem ainda ‘Vulgo Grace’, a trilogia ‘Maddaddão’ e ‘O Assassino Cego’, também ganhador do Booker. Seus livros são publicados no Brasil pela Rocco

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