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Cannes abre com os zumbis de 'Final Cut' devorando o cinema na era do Instagram

Longa de Michel Hazanavicius, premiado com 'O Artista', imagina set invadido por monstros de verdade

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Cannes (França)

Um silêncio um tanto constrangedor ocupou a sala em que os jornalistas assistiam ao filme de abertura do Festival de Cannes, que começou nesta terça-feira, em sua primeira parte. "Final Cut" —corte final, ou "Coupez!", no nome original—, tentava fazer o público se divertir, mas a princípio só arrancou algumas risadas tímidas aqui e ali.

Talvez fosse o humor particularmente francês. Ou a desorientação por ninguém saber ao certo se aquilo que estava vendo era para ser levado a sério. Mas, minutos depois, a comédia pastelão e nonsense pareceu ter enfim seduzido a sala, que entendeu que há vários filmes dentro do filme.

cena de filme
Cena do filme 'Final Cut', ou corte final, dirigido por Michel Hazanavicius e exibido no festival de Cannes 2022 - Lisa Ritaine/Divulgação

Há um terror gore de 30 minutos produzido por um streaming japonês, mas há também o drama dos bastidores dessa gravação. E, no meio, há ainda a história pessoal de mediocridade do diretor-personagem interpretado por Romain Duris.

Novo longa de Michel Hazanavicius, "Final Cut" abre o evento francês sem concorrer à Palma de Ouro —prêmio que "O Artista", que rendeu ao cineasta parisiense o Oscar, não levou, apesar de ter recebido o de atuação masculina.

Descrita simplesmente como a história de um set de filme de zumbi que é invadido por zumbis de verdade, "Final Cut" traz Hazanavicius mais uma vez comentando a própria indústria cinematográfica.

Na trama, o personagem de Duris ganha a vida dirigindo comerciais e vídeos piegas sobre histórias de superação, exibidos na televisão e execrados por sua própria filha, que quer ser uma grande cineasta. Até que um amigo produtor o procura porque precisa de uma solução rápida e barata para adaptar um média-metragem japonês para o público da França.

O protagonista vê nisso uma oportunidade, mesmo com os riscos alarmantes da empreitada –o filme será feito numa única tomada, com transmissão ao vivo por uma plataforma de streaming e sob a inflexibilidade de uma equipe de roteiristas japoneses que não querem seu material alterado, nem mesmo para que os personagens franceses tenham nomes ocidentais.

Sua mulher, uma atriz que largou a carreira interpretada por Bérénice Bejo –a própria mulher de Hazanavicius–, o instiga a aceitar a proposta, o que nos leva a um set de filmagem caótico, habitado por divas, personagens trágicos e mais mediocridade. É nesse clima que eles começam a gravar "Z" —letra que também servia de título para "Final Cut" até ser associada a apoiadores da invasão russa na Ucrânia.

"Final Cut", a princípio, pode ser lido como uma homenagem ao cinema B, com suas atuações propositalmente afetadas e o sangue deliberadamente falso escorrendo por qualquer pedaço de pele visível dos atores.

Um deles é Finnegan Oldfield, de "Marvin", que ao lado de Bejo entrega uma performance saborosa, com uma cretinice e um jeito "esquerdomacho" que alfineta o estrelismo de alguns astros do cinema.

Ao longo das quase duas horas, os comentários sobre a indústria vão ficando mais constantes, fazendo o filme distribuir alfinetadas. Enquanto acompanhamos o diretor em formação vivido por Duris, os personagens se permitem tirar sarro de temas quentes na cultura, como o politicamente correto, a máxima da arte pela arte, o streaming, os novos formatos de audiovisual trazidos pelas redes sociais e a onda dos influenciadores-artistas.

Uma dessas estrelas do Instagram protagoniza "Z", com uma falta de talento negligenciada pelos produtores porque, a cada videozinho que publica sobre os bastidores do filme, ganha milhares de visualizações. É certamente um aceno a críticas que se tornaram comuns na indústria, a escalações de elenco que levam em conta números de seguidores e engajamento nas redes dos artistas.

Não é preciso ir longe para entender a nova realidade —Larissa Manoela foi fazer novela na Globo justamente para tentar chamar um público mais jovem para a emissora, enquanto Jade Picon foi supostamente escalada para um outro folhetim após sua passagem pelo BBB.

"Final Cut" certamente descarrilha para o constrangedor em alguns momentos, mas também o abraça sem pudor. Como escolha para abrir o mais importante festival de cinema do mundo, acaba mostrando também o que pensa Cannes sobre o estado atual da indústria.

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