Descrição de chapéu Cinema Televisão

Milton Gonçalves deu novo lugar ao ator negro na TV e no cinema com seu legado

Do Teatro de Arena para a Globo, na frente e atrás das câmeras, artista desbravou o audiovisual brasileiro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O ator Milton Goncalves em seu apartamento no Flamengo Luciana Whitaker/Folhapress

Tom Farias
São Paulo

São incontáveis os papéis vividos pelo ator Milton Gonçalves durante os seus mais de 60 anos de carreira, na televisão, no cinema e no teatro brasileiros. O mineiro de Monte Santo de Minas, que migrou cedo para a cidade de São Paulo, onde entrou para a vida artística, aos 24 anos, foi ator, diretor, dramaturgo, produtor e, sobretudo, uma figura humana fantástica.

Gonçalves morreu nesta segunda, aos 88, em sua casa no Rio de Janeiro. Desde 2020, quando sofreu um acidente vascular cerebral, na quadra da escola de samba Salgueiro, onde era homenageado, o ator passou a viver com as sequelas do AVC, com problemas de voz e se locomovendo em cadeiras de rodas —teve afetada também a perna esquerda.

Nos últimos anos, Gonçalves vivia recluso, sob os cuidados dos filhos, um deles o também ator Maurício Gonçalves, que qualificou o pai como um "guerreiro".

Durante toda a sua carreira na televisão, iniciada na antiga TV Tupi, Gonçalves lutou por ser negro e de família humilde. Quando chegou a São Paulo, ainda criança, trabalhou como aprendiz de sapateiro, alfaiate e gráfico. Iniciou a vida artística acumulando o trabalho na peça "Ratos e Homens", de John Steinbeck, do grupo Arena.

O gosto pelo teatro e pela televisão, em que estreou em seguida, em "O Vigilante Rodoviário", da TV Tupi, o levou para o Rio de Janeiro, onde logo entraria para o elenco da TV Globo, no mesmo ano do nascimento da emissora. "Não tinha inaugurado nada ainda. Os três estúdios, aquele auditório, pareciam para mim os estúdios da Universal. O primeiro salário foi de 500 cruzeiros. E eu fiquei feliz", ele chegou a recordar certa vez.

Na Globo, Milton Gonçalves realizou de tudo. Entre novelas e séries, foram cerca de 70 produções, não só como ator, mas também como diretor.

Destaque para as antológicas "O Bem-Amado", de 1973, em que interpretou o popular Zelão das Asas, "Roque Santeiro", de 1985, e o remake de "Sinhá Moça", da qual já tinha feito a montagem original. Vale lembrar que o ator esteve na versão censurada da novela de Dias Gomes, da década de 1970, e voltou para uma pequena participação na versão de "Roque Santeiro" enfim levada ao ar anos depois.

Os atores Ruth de Souza e Milton Gonçalves em cena da novela "O Bem-Amado", de Dias Gomes - Divulgação

Como diretor, e muito querido por Janete Clair, Milton Gonçalves trabalhou em grandes sucessos da televisão, como as novelas "Irmãos Coragem" e "Selva de Pedra". Sob seu comando, foi ao ar "Escrava Isaura", de 1976, umas das novelas mais vistas no mundo.

Também estrelou grandes filmes do cinema nacional, como "Macunaíma", interpretando Jiguê, irmão do protagonista, e "O Anjo Nasceu", como o bandido Urtiga, ambos de 1969.

Dentre os últimos trabalhos de Gonçalves estiveram a novela "O Tempo Não Para", de 2018, e a série "Carcereiros". Além disso, ele participou dos filmes "Pixinguinha, Um Homem Carinhoso" e "Hermanoteu na Terra de Godah: O Filme".

Cena de filme
Rodolfo Arena (à esq.), Paulo José (centro) e Milton Gonçalves em cena do filme 'Macunaíma', de Joaquim Pedro de Andrade - Divulgação

Embora estivesse entre os maiores artistas brasileiros, sobretudo como ator e diretor, Gonçalves sofreu na pele a discriminação racial. Seu posicionamento político, no entanto, ajudou a enfrentar a barreira de resistência dentro e fora da televisão.

Ator de destaque de uma emissora que despontava nacionalmente, ele sofreu todos os percalços de um profissional negro na teledramaturgia, em que se destacavam ele e a atriz Ruth de Sousa. "Sofri, mas não concordando com o preconceito racial, que foi um trauma na minha vida", declarou ele, em depoimento para o site Memória Globo.

Nessa mesma emissora, na década de 1960, o ator trabalhou na novela "A Cabana do Pai Tomás", baseada no romance de Harriet B. Stowe, um grande sucesso editorial no Brasil.

A novela, protagonizada pelo ator Sérgio Cardoso, causou polêmica por usar o recurso de blackface, para caracterizar um ator branco, o próprio Cardoso, que contracenava com a atriz negra Ruth de Souza. O constrangimento foi geral, e o dramaturgo Plínio Marcos pediu a presença de Gonçalves na trama.

O ator se destacou também em novelas e filmes da época da ditadura. No papel teatral de "Rainha Diaba", filme de Antônio Carlos Fontoura, de 1974, vivia uma personagem negra, fora da lei e homossexual.

Esses desafios fizeram com que Gonçalves se engajasse cada vez mais nas fileiras do movimento negro, em que foi grande militante.

Cena do filme 'A Rainha Diaba' (1974), com os atores Milton Gonçalves e Odete Lara - Divulgação

Ele integrou o grupo do Cidan, o Centro de Informação e Memória do Artista Negro, criado pela atriz e cantora Zezé Motta. Em São Paulo, foi um dos grandes apoiadores da criação da Universidade Zumbi dos Palmares, voltada para a formação de jovens negros.

O ator chegou a se candidatar ao cargo de governador do Rio de Janeiro, em 1994, pelo MDB. Antes havia tentado se eleger deputado federal. Acabou se concentrando novamente na desestigmatização do negro na arte —e na vida.

Respeitado pelo mundo artístico dentro e fora do Brasil, Gonçalves passou os últimos anos na companhia da família, que comunicou a morte do ator e diretor, ocorrida ao meio-dia, para a emissora para a qual ele se orgulhava de ter entrado no ano de sua fundação.

O intéprete deixa um grande legado e abre uma enorme lacuna na produção do audiovisual brasileiro.
Caberá agora às gerações lideradas pelo ator e também diretor Lázaro Ramos, que era muito ligado a Milton Gonçalves, continuar o seu projeto de luta por um protagonismo negro na tela da televisão brasileira.

Imagem mostra o caixão do ator Milton Gonçalves e familiares se despedindo, no velório
Fãs e personalidades compareceram ao Theatro Municipal do RJ para se despedir do ator - Lorando Labbe/Fotoarena/Agência O Globo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.