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Televisão Cinema

Milton Gonçalves lutou com discrição num Brasil que negava seu racismo

Mesmo sendo um dos primeiros atores da Globo, o protagonismo foi obtido a duras penas, após décadas

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Só a falta de personagens negros no protagonismo de novelas durante décadas explica o fato de Milton Gonçalves não ter ocupado espaço de mais destaque do que de fato teve na televisão brasileira.

O início foi na TV Tupi, no início dos anos 1960, mas Gonçalves esteve na TV Globo desde a inauguração, em 1965, tendo sido um dos poucos atores da emissora registrados em sistema de CLT, com carteira assinada.

O ator Milton Gonçalves posa para foto em seu apartamento, no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro - Luciana Whitaker - 18.jun.08/Folhapress

Foi o primeiro (e durante anos o único) ator negro do elenco principal da emissora, onde também atuou como diretor. Esteve na equipe de direção de "Irmãos Coragem", de 1970, de Janete Clair, novela considerada um marco no início da trajetória de hegemonia da TV fundada por Roberto Marinho.

Nessa trajetória, é redundante lembrar que ele abriu portas, pavimentou estradas e deixou o caminho aberto para as gerações negras que só neste milênio começaram a marcar mais presença na TV.

A militância pela abertura de espaço não vinha, no entanto, em tom de protestos ou manifestos, como acontece hoje. Como alguém capaz de se estabelecer naquele Brasil que não se reconhecia racista, o ator e diretor era discreto, mas pontual no posicionamento em favor de mais diversidade racial na tela. Eram gestos que vinham à tona de acordo com a demanda de papéis ou de acontecimentos do noticiário relacionados ao tema.

Do Zelão das Asas que interpretou em 1973 em "O Bem-Amado", de Dias Gomes, primeira novela em cores da TV brasileira, até o Papai Noel do especial "Juntos a Magia Acontece", de 2019, finalmente como protagonista, Gonçalves fez mais de 40 novelas e outra dezena de séries, mais outra leva de produções especiais para a TV.

Nesse contexto de quem abriu caminhos, dois personagens recentes carregavam ativismo coerente com seu histórico, sendo um deles o próprio Papai Noel que se via frustrado na tentativa de arrumar um bico de fim de ano como Bom Velhinho num shopping que buscava alguém para o posto. "Mas Papai Noel negro? Onde já se viu", era o mote do enredo de Cleissa Regina Martins, com supervisão de George Moura e direção artística de Maria de Médicis.

Orlando (Milton Gonçalves) em cena de "Juntos a Magia Acontece"
Milton Gonçalves em cena de 'Juntos a Magia Acontece' - Estevam Avellar/Globo

A produção faturou um Leão de Ouro no Festival de Publicidade de Cannes, na categoria de entretenimento. A comoção do script disfarçava sua condição de branded content, mas o fato é que aquele especial era uma encomenda da Coca-Cola, que soube honrar a condição de entretenimento, além de cumprir com as ambições de pluralidade que Milton só conheceria nas duas últimas décadas.

Pouco antes do especial de Natal, o ator também teve presença na linha de frente da novela "O Tempo Não Para", em 2018, de Mario Teixeira, cuja premissa partia de uma família que ficara congelada desde 1887, antes da abolição da escravidão, desembarcando então no período contemporâneo.

Novela "O Tempo Não Para" - Milton Gonçalves - Eliseu
Milton Gonçalves como Eliseu na novela 'O Tempo Não Para' - Divulgação

Quando o ex-nobre vivido por Edson Celulari se via livre do gelo e encontrava aquele homem idoso de cabelos brancos e pele preta empurrando sua carrocinha de sucata pelas ruas da cidade, se mostrava espantado. "Mas isso é liberdade? Nem aos meus escravos eu tratava assim", dizia.

A situação abriu espaço para boas reflexões acerca da morosidade da ascensão social reservada aos descendentes da escravidão no Brasil, ritmo este que a televisão acompanhou, sob o testemunho e a cumplicidade de Milton Gonçalves.

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