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'Gelo', de Anna Kavan, mostra capacidade da ficção de sonhar o futuro

Com atmosfera surrealista, britânica até agora desconhecida no Brasil faz construção detalhada do assédio à figura feminina

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Kelvin Falcão Klein

Professor de literatura comparada da Unirio

Gelo

  • Preço R$ 69,90 (208 págs.)
  • Autoria Anna Kavan
  • Editora Fósforo

A escritora britânica Anna Kavan, até agora desconhecida no Brasil, nasceu como Helen Woods em 1901. Começou sua carreira publicando com o nome de casada, Helen Ferguson, até adotar o nome que conhecemos em 1939, mantendo essa assinatura até sua morte em 1968.

Ao longo da década de 1930, época de seu primeiro divórcio e de uma vida errante entre Espanha, França e Itália, publicou seis romances, iniciando a criação de um universo narrativo original e perturbador.

Essa primeira fase de sua trajetória também é marcada pelo início de suas várias internações, motivadas tanto pela depressão quanto pelo vício em heroína. Seu livro de 1940, "Asylum Piece", o primeiro publicado como Anna Kavan, é uma coletânea de contos que tematiza não só a vivência no interior dessas instituições, mas também a paisagem psicológica do sujeito que não se harmoniza com os ditames sociais.

Uma mulher no chuveiro apoia a mão no vidro - Carol Anne/Adobe stock

A partir desse ponto, Kavan transforma seu estilo, investindo no fluxo de consciência e na experimentação vanguardista, um exercício criativo que culminará em seu principal livro, "Gelo", publicado em 1967.

O narrador de "Gelo" é um homem, ex-soldado e explorador, que sofre de insônia e de terríveis dores de cabeça. Quando consegue dormir, é atormentado por pesadelos, o que faz com que a narrativa de Kavan seja permeada por uma dúvida constante acerca do que é real e do que é sonhado.

Essa instabilidade se reflete também no estilo de escrita, que oscila entre o metafórico e o literal, e também na dinâmica dos personagens. Nenhum deles recebe um nome, são identificados como tipos ou funções, "o guardião", "o narrador" e, por fim, "a garota".

O pano de fundo da trama é o fim do mundo que se aproxima. Aos poucos ficamos sabendo que "a explosão de um dispositivo nuclear" gerou uma série de consequências catastróficas ao planeta, entre elas a emergência de uma "massa de gelo indestrutível", responsável pela obliteração da vida na Terra.

Em paralelo, acompanhamos a busca obsessiva pela "garota", reivindicada e perseguida tanto pelo narrador quanto pelo guardião. Logo no início, o primeiro deles declara que "a garota se tornou uma obsessão, só conseguia pensar nela, sentia que devia vê-la de imediato, nada mais importava".

De certa forma, a derrocada do planeta, ameaçado pela parede de gelo que se aproxima, é análoga à paulatina perda de liberdade da garota, acossada pelas duas entidades masculinas do romance. Em vários momentos as descrições parecem se mesclar. O narrador declara que "à terra indefesa só restava esperar a destruição"; adiante, comenta que à garota, "desamparada, indefesa", "só lhe restava esperar pelo fim".

Expondo uma espécie de síntese, ele encerra um parágrafo com uma fórmula condizente com os destinos do planeta e da garota. "Os danos irreparáveis infligidos há muito tempo tornaram seu destino inevitável."

Um terceiro elemento que se articula com o tecido simbólico de "Gelo" é a determinante presença de traços autobiográficos de Kavan na trama. A escolha do frio e do gelo como instrumentos para o fim do mundo decorre do período em que viveu na Nova Zelândia, muito próxima do continente Antártico.

Mais relevante, contudo, é a atmosfera surrealista da narrativa e a construção detalhada do assédio à figura feminina, dimensões que Kavan explorou ao longo de toda sua obra e que guardam relação direta com suas vivências.

É um romance complexo, com muitas camadas, que exige do leitor uma atenção permanente às alusões e aos simbolismos. Ao mesmo tempo, o romance impressiona pela atualidade de seus temas —a destruição do planeta pelas mãos de seus habitantes, a violência cotidiana, direta e indireta, contra as mulheres— e pelo modo visceral como os aborda.

A história da literatura tem dessas surpresas, obras esquecidas que retornam, às vezes décadas depois da primeira aparição, reconfigurando e transformando o presente. Certamente é o caso com Kavan e "Gelo", romance que testemunha a capacidade da ficção de sonhar o futuro.

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