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Em 'Blonde', Ana de Armas encarna Marilyn Monroe exuberante e melancólica

Atriz cubana se transforma na diva de Hollywood com semelhança assustadora, entre sedução e vulnerabilidade

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Veneza (Itália)

Escolher uma cubana para dar vida à maior e mais americana das estrelas de cinema não parece, a princípio, a mais brilhante ideia. Mas o neozelandês Andrew Dominik resolveu, ainda assim, investir todas as fichas em Ana de Armas para viver Marilyn Monroe em "Blonde", exibido em competição em Veneza. Ao final da sessão, ficou claro que o diretor ganhou a aposta.

Platinada para o filme, a morena De Armas surge com uma semelhança física assustadora com Marilyn. Mas não é só isso que a torna uma escolha acertada. Ela consegue transmitir uma vulnerabilidade e uma melancolia no olhar que eram muito próprios da loira —é ao mesmo tempo um trabalho de mimese da biografada e uma performance que denota grande preocupação em compreender sua essência.

Ana de Armas como Marilyn Monroe - Instagram/ana_d_armas


O longa começa com Marilyn criança, quando ainda se chamava Norma Jean e vivia com a mãe alcoólatra, sentindo falta de uma figura paterna.

Anos mais tarde, a menina medrosa e assustada virou uma mulher de beleza exuberante, com grande inteligência e uma insegurança colossal. A pequenina Norma se tornaria a vulcânica Marilyn Monroe, ícone da feminilidade do século 20, que teve uma carreira meteórica, com alguns filmes de gosto duvidoso, mas também algumas obras-primas —embora, quando viva, a atriz nunca tenha tido o devido valor reconhecido. Morreu frustrada, aos 36, há 60 anos, após consumo excessivo de remédios.

"Na maior parte do filme, Norma Jean está mais presente. Mas em alguns momentos, Marilyn toma conta", disse De Armas, em entrevista coletiva, esclarecendo que sua personagem era uma pessoa na vida íntima, mas que representava um papel na esfera pública. "Eu estava conectada a ambas emocionalmente. Não houve uma decisão racional sobre quando uma ou a outra deveria surgir em cena", afirmou, sem esconder o nervosismo diante da imprensa mundial.

É compreensível, já que o filme pode catapultar de vez sua carreira em Hollywood ou evidenciar que De Armas, apesar da boa fase, seria só fogo de palha. Mas a atriz consegue comprovar seu talento e criar uma Marilyn bastante crível.



Além de fatos amplamente conhecidos, como sua tendência à depressão e a violência doméstica sofrida em seu casamento com Joe DiMaggio, o filme insinua questões mais obscuras envolvendo a estrela. Marilyn teria engravidado do presidente John Kennedy quando tiveram um romance —e, pior ainda, teria abortado à força, a mando do amante.

O filme, que se baseia no livro homônimo de Joyce Carol Oates, atribui grande parte da insatisfação existencial de Marilyn ao fato de ela nunca ter gerado um filho, o que talvez fosse um desejo de compensar a própria ausência de pai (e de mãe) na infância. O modo masoquista com a qual se entregava aos homens também são um indício do quanto essa carência a tornou uma m ulher emocionalmente frágil.

"Blonde" é um "biopic" digno, melhor que as cinebiografias em geral, mas Dominik prolonga a história em demasia —são três horas de duração, e não é fácil ver Marilyn sofrendo por tanto tempo, sem parar. É um filme sem humor, pesado, até deprimente, mas que, de fato, faz entender melhor quem foi a diva, para além do mito criado por Hollywood.

Após uma metade insossa —tendo só "Tár", de Todd Field, como destaque—, Veneza parece ter reservado as obras mais desafiadoras para o fim, embolando a disputa pelo Leão de Ouro. O lacrimoso "The Whale", de Darren Aronofsky, que largou na frente, parece ter perdido força diante de filmes menos esquemáticos e mais arrojados, como "The Banshees of Inisherin", de Martin McDonagh, e "Love Life", de Kôji Fukada.

Mas dois outros filmes tornaram a competição ainda mais empolgante —"Saint Omer", da franco-senegalesa Alice Diop, e "Beyond the Wall", do iraniano Vahid Jalilvand.


Um dos filmes mais perturbadores desta edição, "Saint Omer", estreia em ficções de Diop, até então diretora de documentários, se baseia num caso verídico ocorrido na França na década passada. Mostra uma intelectual negra obcecada pela história de uma mulher também de origem africana, que matou a própria filha de 15 meses. No tribunal, a criminosa não consegue explicar o que a levou a tomar essa atitude, mas descreve o ocorrido em intrigantes detalhes.

Por meio de longuíssimas e muito precisas cenas de interrogatório, o espectador conhece melhor a trajetória daquela mulher, se surpreendendo a cada nova fala. Descobrimos aspectos por vezes inesperados sobre a assassina, que nos jogam em nossa cara os nossos próprios preconceitos, revelados no confronto entre o que esperávamos que ela fosse dizer e o que ela de fato diz.

Sem ter a menor vontade de ser simpática ou de se vitimizar, ela aos poucos se torna uma criatura extremamente interessante, humana —entendemos bem por que a escritora ficou tão fascinada por ela.
Diop se revela uma diretora bastante segura, capaz de tocar adiante uma história de grande complexidade. Contra o filme, podemos dizer que ele tem um aspecto discutível —ao sugerir que a história de vida, questões sociais, nacionais e de gênero podem fornecer certos motivos para uma mulher querer se livrar da filha, o filme caminha no fio de uma navalha talvez afiada demais. Mas só o fato de nos mostrar que há a possibilidade de uma mulher cogitar o infanticídio devido a uma série de pressões reais, o filme se revela ousado, valioso.

Guslagie Malanga, na pele da Medeia senegalesa, constrói a personagem com tamanha precisão que é impossível não ficar absorto por sua personalidade, ainda que o que ela tenha feito seja imperdoável. O longa tem chances reais de deixar Veneza com um Leão de Ouro. Se isso de fato ocorrer, será a primeira vez que uma pessoa negra (homem ou mulher) terá um filme vencedor do maior prêmio em um grande festival.

Mas o iraniano "Beyond the Wall" também é um concorrente poderoso. Mostra um sujeito com um problema sério de visão, prestes a ficar cego, que certo dia tem seu apartamento invadido por uma fugitiva da implacável polícia iraniana —ela encontra abrigo ali, se aproveitando das dificuldades do dono da casa para enxergar.

Mas isso é só o começo de um filme cheio de surpresas narrativas, com uma montagem de excepcional qualidade, que mistura cenas do passado, do presente e de um campo
provavelmente imaginário.

Como nos melhores filmes iranianos, existe ali uma crítica à truculência das autoridades do país, além de um poderoso e comovente aspecto humano que une os personagens. Mostra que o Irã, também representado no Lido nesta sexta-feira por "No Bears", de Jafar Panahi, preso político em seu país, ainda é um celeiro de um cinema fabuloso, apesar do cerceamento criativo pelas autoridades.

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