Descrição de chapéu
Hélio Menezes

Emanoel Araújo, genial e contraditório, revirou as raízes negras do Brasil

Artista e curador polêmico foi pioneiro ao revisitar a história da arte do país, na qual a herança africana era desprezada

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Hélio Menezes

Antropólogo, atua como curador, crítico e pesquisador; é curador da 35ª Bienal de São Paulo

Conhecido por sua inteligência afiada, humor ácido, pelo gênio forte e temperamento explosivo, Emanoel Araújo foi uma figura controversa e referência em diversas frentes. Foi mesmo um "gênio", com o exagero barroco de que ele tanto gostava.

Tudo em Araújo foi superlativo. Ele foi artista —dos melhores que tivemos—, curador, colecionador, pesquisador e diretor de importantes instituições —até teve passagens pela vida política.

Retrato do artista plástico e diretor curador do museu Afro Brasil, Emanoel Araújo, ao lado de Pavao empalhado (presente de Charles Cosac), um dos varios objetos que decoram sua casa no bairro Bela Vista - Eduardo Knapp - 4.dez.12/Folhapress

São da década de 1960 as primeiras participações dele em exposições e suas primeiras atuações profissionais em museus. Já seus primeiros anos em São Paulo resultam em dois projetos de fôlego, que mudariam a paisagem das artes paulistanas —"A Mão Afro-Brasileira", exposição realizada em 1988 no MAM, e seus dez anos à frente da Pinacoteca de São Paulo, de 1992 a 2002.

O primeiro foi nada menos que um grande inventário de artistas afro-brasileiros do século 18 ao 20, resultando numa exposição e publicação homônimas que são referência ainda hoje. "Não existiria hoje uma arte legitimamente brasileira sem a criativa e poderosa influência do negro", ele disse à época.

O segundo feito foi todo o processo de restauro e revitalização do prédio que mudou por completo a cara da Pinacoteca. Araújo foi responsável por torná-la o museu brasileiro com maior presença de artistas negros em sua coleção —o que só se alteraria com a criação do Museu Afro Brasil, também de sua autoria.

Podemos afirmar que sua figura e seus feitos se tornaram inseparáveis dos entendimentos mais importantes sobre arte brasileira. Foi um dos primeiros intelectuais a revirar a história das artes até então contada por aqui.

Sem ser ativista, Araújo contribuiu enormemente para que o Brasil se visse cara a cara, ao sublinhar a presença estruturante e os diversos aportes de origem negra à arte e à cultura nacionais.

Sua refinada produção artística, junto a um programa curatorial arrojado, revelariam que o Brasil só poderia ser entendido se fosse percebido como um "afro-Brasil", tributário das civilizações africanas que o compõem. Isso muitos anos antes da palavra "decolonialidade" entrar em voga e do assalto que instituições de arte hoje fazem à pesquisa que Araújo levou por toda a vida, sem dar a ele o crédito devido.

Tal apagamento, contudo, não descreve bem a sua trajetória. Contrariando o destino imposto a homens negros, nordestinos e homossexuais neste inferno racial chamado Brasil, Araújo se sobressaiu e deixou uma marca indelével num ambiente dominado por elites brancas e incultas do Sudeste, com seus olhos voltados a tudo que emane da Europa.

Amado e odiado em iguais intensidades, Araújo foi uma pessoa-encruzilhada, um Ogum abre-caminhos, tendo atuado na promoção de centenas de artistas, sobretudo os nomes afro-brasileiros.

Para além das críticas que o envolveram, não há quem deixe de reconhecer sua participação no fortalecimento de instituições de arte e no giro estético-racial que suas pesquisas desenrolaram.

"Arte afro-brasileira existe e não existe", costumava dizer. Era assim o seu jeito. Ambivalente, Araújo era contrário ao que fosse estático. Ao longo das últimas quatro décadas, ele foi agregando sentidos sobre o que seria a arte afro-brasileira, por vezes até contraditórios.

"Embora me recuse a dizer a cor da pele, penso nela como fundamento e como princípio", disse certa vez, ao definir sua prática curatorial.

Alguns colegas, por vezes anacrônicos, veem em seu posicionamento conservador um certo ideário de negritude mais "sociocultural" que "engajado". A verdade é que, tal Exu, Araújo mais confundia que explicava.

Recordo o impacto que levei ao entrar pela primeira vez no Museu Afro Brasil, em 2005. Eu havia acabado de me mudar da Bahia para São Paulo. Encontrei naquele museu um espaço de referência e de memória. Vi também ali um espaço fértil de pesquisa. Como eu, dezenas de colegas dedicaram suas dissertações e teses à produção curatorial, artística e institucional de Araújo.

Foi em suas mostras que descobri Maria Auxiliadora, Madalena dos Santos Reinbolt, os irmãos Thimóteo da Costa e Agnaldo Manuel dos Santos. Estudando "Negro de Corpo e Alma", aprendi mais sobre o país do que na escola.

Só pelo seu legado, Araújo deve ser incluído entre aqueles "para nunca esquecer", como anunciava o título de uma de suas exposições mais marcantes —"Para Nunca Esquecer: Negras Memórias, Memórias de Negros", realizada em 2001, no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro.

Que sejamos hábeis, para usar seus termos, em "unir história, memória, cultura e contemporaneidade, entrelaçando essas vertentes num só discurso, para narrar uma heroica saga africana, desde antes da trágica epopeia da escravidão até os nossos dias, incluindo todas as contribuições possíveis, os legados, participações, revoltas, gritos e sussurros que tiveram lugar no Brasil e no circuito das sociedades afro- atlânticas".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.