Mostra ataca as bases do patriotismo de Bolsonaro e elites econômicas do Brasil

Artista Bruno Faria questiona a apropriação dos símbolos nacionais e narrativa ufanista do governo sobre a história

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São Paulo

Na tela, vemos só a mão de uma mulher, seu isqueiro de ouro e um cinzeiro, com um desenho no fundo do recipiente que mostra a praça dos Três Poderes, em Brasília. Aos poucos, a imagem da capital federal se perde com as cinzas do cigarro que ali vão caindo.

"Eu estou acostumada com o La Scala, de Milão, com o Metropolitan, de Nova York, você acha que eu vou ao Municipal e me sentar ao lado de uma pessoa de calça jeans?", pergunta a personagem, como se estivesse ao telefone com outra dondoca.

A voz é de Odete Roitman, vilã interpretada pela atriz Beatriz Segall na novela "Vale Tudo", de 1988, uma das mais famosas da história da teledramaturgia do país. "Natureza Morta", videoinstalação do artista plástico Bruno Faria, que abre a exposição "O Sertão Vai Virar Mar", na galeria Marília Razuk, faz uma crítica à elite econômica brasileira. "Odete Roitman tem um discurso bolsominion, ela seria bolsonarista nos dias atuais", ele diz.

Uma das telas de 'O Sertão Vai Virar Mar', em mostra de Bruno Faria - Divulgação

Às vésperas das eleições, a mostra de Faria questiona o ufanismo do governo federal, sobretudo no ano do bicentenário da Independência. Em "Desarranjo", a partitura do hino nacional é reproduzida, mas, no lugar das notas, buracos no pentagrama simulam tiros na parede branca. Ao lado, o espectador ouve o próprio hino nacional e o da Independência, gravados, em 1972, pela banda e o coral masculino da Polícia Militar de São Paulo.

A capa do vinil é a tela "Independência ou Morte", de Pedro Américo. "Escutamos esses hinos até em manifestações a favor do Bolsonaro, assim como as cores da bandeira foram apropriadas por esse movimento", afirma Faria.

O artista recifense estende sua crítica ao projeto de modernização do país, simbolizado pela criação de Brasília. "Falha", de 2020, traz um copo usado, em 1960, nas festividades da inauguração da cidade. O objeto está rachado, e a água nele contida escorre, numa metáfora de um projeto que precisa estar em constante manutenção.

Já "Paisagem Falida" é composta por 22 paisagens litorâneas reproduzidas em papel carbono, da fábrica Helios Carbex, que dominava o mercado de máquinas de escrever. Com a ponta seca de uma caneta Bic azul, o artista contorna a matriz até que, repetindo o desenho à exaustão, a paisagem desaparece. A fábrica Helios, afinal, foi à falência, com o processo tecnológico das décadas seguintes.

Ao mesmo tempo que critica o passado, Faria imprime um tom esperançoso para o futuro do país, como mostra o trabalho "O Sertão Vai Virar Mar", frase proferida pelo beato Antônio Conselheiro, em 1883, em Canudos, na Bahia.

De natureza interativa, a obra reproduz o dizer nas molduras de telas, feitas por artistas pernambucanos. O espectador pode escolher a pintura preferida e pendurar, ele mesmo, a obra na parede da sala da galeria.

Em contraste com a geração que se identificou com as falas de Odete Roitman, alunos do ensino médio do Ginásio Pernambucano gravam, em madeiras retangulares, verbetes sobre personalidades brasileiras, na obra "Introdução à História do Brasil".

No verbete dedicado a Pedro Álvares Cabral, lemos "invasor e explorador das terras brasileiras". "Considerado símbolo do patriotismo, teve uma atuação controversa e é, na verdade, um símbolo da violência."

O Sertão Vai Virar Mar

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