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Artista William Klein se equilibrou entre acidez e glamour em fotografias

Americano morto esta semana eternizou metrópoles como Nova York com personagens que reagiam à sua câmera intrusiva

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Tuca Vieira
Berlim

William Klein, um dos fotógrafos mais influentes da história, morreu no último dia 10, em Paris, aos 96 anos. Americano radicado na França desde os anos 1940, ele dirigiu documentários e produziu comerciais de televisão.

'Gun 1', fotografia de William Klein feita em Nova York em 1954
'Gun 1', fotografia de William Klein feita em Nova York em 1954 - Howard Greenberg Gallery/Reprodução

Nascido em 1926, Klein se juntou ao Exército dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, atuando na Alemanha e na França, onde acabou se estabelecendo após o conflito. Em Paris, estudou pintura com Fernand Léger e acabou se tornando um fotógrafo de moda.

Fotografou sobretudo para a revista Vogue, em que foi responsável por uma série de inovações ao trabalhar de improviso, incorporando a vibração das ruas aos editoriais. Suas fotos traziam uma crítica irônica ao próprio meio da moda, se equilibrando entre o glamoroso e o ridículo da indústria de consumo.

Retrato do fotógrafo William Klein em 2002
Retrato do fotógrafo William Klein em 2002 - Maximilien Lamy/AFP

Mas seu trabalho fotográfico mais conhecido é o livro "Life Is Good & Good for You in New York: Trance Witness Revels", resultado de longas caminhadas pela cidade realizadas em 1955 e 1956. Rostos, multidões, luminosos, cartazes e carros se sucedem num ritmo vertiginoso, dando conta da pulsação nem sempre saudável da metrópole.

Com muitas fotos em alto contraste, fora de foco, granuladas e tremidas, Klein trata a fotografia sem excesso de respeito, usando a câmera e a lente grande-angular de forma intrusiva. O fotógrafo não pretende ser invisível e interfere na cena. Seus personagens reagem à presença da câmera.

O livro é permeado de imagens ao mesmo tempo violentas e irônicas, como na famosa fotografia de um menino apontando o revólver para o fotógrafo —uma poderosa metáfora do próprio ato fotográfico, uma vez que a câmera de Klein também é uma espécie de arma apontada.

Não por acaso, em inglês, se usa o verbo "shoot" tanto para fazer uma fotografia quanto para disparar uma arma. Essa violência, aliada a uma espécie de sujeira visual que atravessa o livro, impediu num primeiro momento a obra de ser publicada nos Estados Unidos, acusada de vulgar pelos editores. "Você transformou Nova York numa favela", disseram uma vez. Hoje, uma edição original do livro pode chegar a custar alguns milhares de dólares.

A obra é um marco não apenas da fotografia, mas do desenho gráfico, também realizado pelo autor. As fotos estouradas na página, a costura decepando as imagens, a tipografia publicitária, a inspiração nos tabloides e as legendas irônicas introduziram uma radicalidade desconhecida num meio até então caracterizado pelo preciosismo.

Klein tinha horror da fotografia imaculada flutuando sozinha na página, rodeada de margens brancas. Ele traz para seus livros a fuligem, a cacofonia e a velocidade da cidade que serviu de inspiração para sua obra.

Aqui não há a elegância de Cartier-Bresson nem a melancolia de Robert Frank, seus contemporâneos e também representantes daquilo que veio a se chamar "street photography" —subgênero fotográfico caracterizado pela câmera portátil 35 milímetros, filme de rolo preto e branco e longas derivas pelas metrópoles. São fotógrafos-caçadores, atentos e prontos para dar o bote.

"Life Is Good" termina com uma imagem de Nova York vista de cima. A fotografia superexposta mostra uma cidade apocalíptica, como que atingida por uma bomba atômica. De certa forma, podemos encontrar essa radioatividade em toda a obra de Klein.

Os livros subsequentes —sobre Paris, Roma e Tóquio—, as pranchas de contato riscadas, os negativos mal revelados, tudo parece imbuído de uma energia radical que vai contaminar enormemente o meio fotográfico. A fotografia japonesa do pós-Guerra, por exemplo, com seus livros cultuados, bebe da fonte radioativa de Klein.

Essa eletricidade está presente mesmo em seus documentários. Em "Muhammad Ali, The Greatest", de 1969, o pugilista americano destila sua verve inigualável. Em "Broadway by Light", de 1958, uma pequena pérola do cinema experimental, são as próprias luzes de neon das ruas de Nova York que dançam num ritmo alucinante.

Fotografia, artes gráficas, cinema, publicidade e música, como nas melhores obras da pop art, se unem numa pequena sinfonia que apenas uma grande cidade pode produzir.

Ele foi um dos raros artistas capazes de falar sobre assuntos de seu tempo —a vida urbana, a indústria do espetáculo, o comportamento— ao mesmo tempo em que gerava uma reflexão sobre o meio que utilizava para esse discurso.

Sobre a fotografia particularmente, produziu a série documental "Contacts", de 1983, em que convenceu diversos fotógrafos a mostrar e comentar suas pranchas de contato —um dos objetos mais fascinantes da fotografia, espécie de caderno de notas que revela o íntimo processo do fotógrafo em busca da imagem.

É bastante difícil classificar sua obra. Jornalismo, publicidade, moda, artes gráficas, tudo se mistura em seus livros, filmes e fotografias. Seria pouco dizer que ele foi simplesmente um artista inovador que quebrou as regras de seu meio. Klein foi além, pois não é sempre que nos deparamos com alguém que inventou as próprias regras.

Não deixa de ser sintomático de nossa época que tenhamos perdido William Klein e Jean-Luc Godard na mesma semana, dois nonagenários que continuaram a produzir até os últimos dias. Com essas perdas, também se perde muito de uma ousadia visual que caracterizou o século 20 e abriu nossos olhos
para novas possibilidades de percepção da realidade.

Nessa semana, nossa capacidade de enxergar o mundo empobreceu, justo nesse momento caracterizado pelo excesso de imagens descartáveis que acabam por saturar perigosamente nossas retinas. A pergunta que resta é: quem vai nos guiar agora nesse oceano de informação visual?

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