Mostra no IMS Paulista revela as contradições do Brasil republicano em fotos

Obras de Francisco Rebello, Augusto Malta e Marc Ferrez retratam a modernização de Rio de Janeiro, São Paulo e Recife

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Obras da mostra 'Moderna pelo Avesso', no Instituto Moreira Salles de São Paulo

Obras da mostra 'Moderna pelo Avesso', no Instituto Moreira Salles de São Paulo Divulgação

São Paulo

Aos primeiros sinais de chuva forte, a população carioca corria para a avenida Beira-Mar, na Glória. Quando a maré virava, o mar se engulhava todo, e as ondas se chocavam contra o paredão de rochas que separava o oceano da cidade. Nos anos 1920, não havia aterro. Tampouco contenção litorânea. A ressaca que ali estourava produzia uma cortina de espuma e água, envolvendo toda a paisagem enevoada.

As ondas na rebentação também interessavam aos fotógrafos, que se reuniam em batalhões à beira-mar. A exposição "Moderna pelo Avesso: Fotografia e Cidade, Brasil, 1890-1930", agora no Instituto Moreira Salles, traz algumas imagens de Carlos Bippus e Augusto Malta, que documentavam aquele fenômeno.

Obras da mostra 'Moderna pelo Avesso', no Instituto Moreira Salles de São Paulo
Obras da mostra 'Moderna pelo Avesso', no Instituto Moreira Salles de São Paulo - Divulgação

A belle époque havia consagrado a imagem como o espetáculo da modernidade. Mas, em geral, os artistas do período não se interessavam tanto pela natureza. A notícia estava na urbanização das cidades, que se acelerava, com as várias invenções do período —o automóvel, o telégrafo, o telefone.

As reformas urbanas do prefeito Pereira Passos, por exemplo, miraram as metrópoles europeias, instituindo o "Bota-Abaixo", projeto eugenista que demolia sobrados e cortiços para abrir avenidas. Inspirado no barão Hausmann, Pereira Passos queria transformar o Rio de Janeiro numa "Paris tropical".

Havia na cidade uma penca de jornais e revistas ilustradas, cafés e, sobretudo, salas de cinema. Moderna por excelência, a cinefilia despontava como expressão artística voltada para o consumo em massa. Não por acaso, são simbólicas as fotos de Marc Ferrez, que registram o Cine Pathé, uma das primeiras salas da cidade a ter uma programação regular. O próprio fotógrafo era dono do edifício, todo em estilo art déco.

A mostra traz ainda as cartelas que, em 1910, eram projetadas na sala, com propagandas e orientações ao público. Nelas, as letras desenhadas e o acabamento gráfico elucidam o modo como a visualidade tinha primazia entre as formas de comunicação no início do século 20.

"Moderna pelo Avesso", contudo, propõe deslocar o olhar do Sudeste para outras regiões do país não tão estudadas pela historiografia. Entre fotos e filmes silenciosos, a exposição reúne 311 obras de 29 coleções, incluindo o acervo do IMS. A mostra destaca a profusão de imagens que surgiu para retratar a urbanização de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Belém.

"A ideia da é abordar as diversas contradições desse processo que existem até hoje", afirma Heloisa Espada, curadora da mostra. "É uma república proclamada um ano depois da abolição da escravatura, sem que essas pessoas tenham sido agregadas à sociedade com seus direitos."

As contradições do projeto republicano também estão na arquitetura. Símbolo da construção colonial em Minas Gerais, Ouro Preto foi substituída por Belo Horizonte, de forma a reafirmar o projeto republicano. A fundação da capital foi toda registrada por estúdios que surgiram na época.

Segundo um panorama em fotopintura de Olindo Belém, Belo Horizonte ainda tinha ares bucólicos. No meio de campos inóspitos, apenas uma igreja se impunha. A classe trabalhadora, no entanto, já sentia a necessidade de migrar para a primeira cidade planejada do país.

Em última instância, era preciso abandonar o patrimônio da colônia, o que foi feito sem as noções de preservação que aflorariam no século 20. A modernidade se tornava, então, sinônimo de esquecimento.

Ainda na sala dedicada à capital mineira, o visitante assiste a um dos primeiros filmes silenciosos que surgiram no país, "Reminiscências", de 1909, de Aristides Junqueira. A sequência de imagens em movimento retratava o cotidiano de sua família, com a mesma estética dos primeiros filmes dos irmãos Lumière, os inventores do cinema.

Em outros filmetes, lembramos toda a magia das produções de Georges Méliès, para quem a imagem era o princípio de ilusão. É o caso de "Cerâmica Horizontina", de 1920, do italiano Iginino Bonfilo, que se mudou em 1904 para Belo Horizonte. Naqueles poucos segundos, assistimos ao cotidiano de uma fábrica onde crianças tinham a mão de obra explorada.

Na mostra, o visitante pode admirar algumas fotos de Ferrez ou Guilherme Santos tal como no período, em estereoscopias —uma técnica que obtém o efeito de três dimensões a partir de duas fotos justapostas.

Em São Paulo, três imagens feitas em 1910 por Vincenzo Pastore contam uma história não oficial do período. Uma delas mostra dois homens negros, vestindo chapéus e ternos bem alinhavados, conversando no banco de uma praça. Noutra, um vendedor de vassouras aparece batendo de porta em porta, oferecendo seus produtos. Na terceira imagem, um homem pobre conserta o próprio sapato.

Pastore, que era um fotógrafo de estúdio, encontrou na rua a modernidade, retratando figuras esquecidas pelos documentos oficiais. A exemplo do Rio de Janeiro, a belle époque paulistana foi marcada por construções em estilo art nouveau, como a estação da Luz ou o vale do Anhangabaú.

O glamour do período, contudo, também ficaria restrito a uma elite, representada, em São Paulo, pelos produtores de café. No período, a população da cidade saltou de 70 mil para 240 mil habitantes. O fenômeno da multidão é um conceito central para delimitar a modernidade. Só que Belém e Recife, cada cidade à sua maneira, apresentaram algumas peculiaridades.

Ainda que não apresentasse densidade populacional expressiva, Belém foi um centro econômico ligado ao ciclo da borracha. Se os paraenses abusavam dos galicismos, a fauna amazônica deixava inegável o lugar de Belém nos trópicos. Fotos do botânico suíço Jacques Huber revelam a riqueza da flora do norte do país. São vários tipos de orquídea, samaumeira e até fungos, que ganham belos contornos nas imagens.

Recife, por fim, tinha um cenário de efervescência cultural, com as ruas sendo tomadas pela patuscada carnavalesca. Dali, emergem algumas das principais obras da mostra, assinadas por Francisco Rebello, um fotógrafo pouco conhecido que saiu de Goa, na Índia, e foi parar nas ruas de Pernambuco.

Sol a pino, Rebello expõe as sombras que se formam no chão batido. Entre céu e terra, aparece o desenho de um folião, que brinca na praça da Independência, formando um descompasso entre corpo —suas pernas lépidas— e projeção —braços abertos, a sombrinha do frevo atada à própria sombra.

"Nessa época, é impossível falar das novas tecnologias de fotografia sem o cinema", diz Espada, a curadora. "Aqui, delimitamos o momento em que a imagem passa a ser consumida em massa."

Moderna pelo Avesso: Fotografia e Cidade, Brasil, 1890-1930

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