Descrição de chapéu
Livros LGBTQIA+

Livro sobre homem com pênis pequeno ataca gays cheios de preconceitos

'Johnny, Você me Amaria Se o Meu Fosse Maior?' explora a violência dos estereótipos de encontros sexuais automatizados

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Renan Quinalha

Professor de direito da Unifesp e autor de 'Contra a Moral e os Bons Costumes: A Ditadura e a Repressão à Comunidade LGBT' (Companhia das Letras)

Johnny, Você me Amaria Se o Meu Fosse Maior?

  • Preço R$ 46,90 (176 págs.); R$ 32,90 (ebook)
  • Autor Brontez Purnell
  • Editora Planeta
  • Tradução Regiane Winarski

"Johnny, Você me Amaria Se o Meu Fosse Maior?" é a versão brasileira, que acaba de chegar às livrarias, de um livro underground que ocupa lugar de destaque na literatura queer desde que foi publicado há cinco anos nos Estados Unidos.

O título original, mais explícito e menos ambíguo, remete diretamente ao tamanho do pênis como uma das grandes manifestações do falocentrismo dentro da comunidade gay —"Johnny Would You Love Me If My Dick Were Bigger".

Ilustração de Francisco Hurtz - Francisco Hurtz

A escolha da tradução, contudo, em nada altera o conteúdo contundente do livro. Em linguagem crua e mesmo pornográfica, Purnell consegue traçar um retrato ácido das diversas camadas de precariedade que marcam a trajetória de um jovem saído do estado americano de Alabama diretamente para o considerado epicentro da liberdade sexual, a região de San Francisco.

Seu lugar de observação e de fala é o de um negro vivendo à margem de uma plêiade de hippies, yuppies, hipsters e outros tantos descolados em um território supostamente acolhedor à diversidade, mas que é atravessado por outras tantas desigualdades e exclusões, sobretudo de raça e de classe.

O texto vai tomando a forma de um conjunto de relatos curtos de experiências, quase como exercícios de escrita criativa em torno de situações cotidianas, organizados sem ordem cronológica definida, mas costurando uma biografia em caleidoscópio envolvente e intrigante. Para leitores mais afeiçoados a uma narrativa tradicional e coesa, a leitura pode soar, por vezes, um tanto cansativa e caótica.

Mas caos talvez seja a melhor definição do modo de existir reivindicado pelo narrador, um homossexual autoproclamado "old school" e que não consegue acompanhar as transformações intensas na subcultura queer em seu entorno. Ainda que não se trate exatamente de uma autobiografia, há muitas semelhanças entre o protagonista e o próprio autor do livro.

O narrador deliberadamente não se adapta à normalização do estilo de vida gay, cada vez mais gentrificado e capturado pela homonormatividade —que pode ser definida como a troca de um modo eroticamente subversivo de estar no mundo por um desejo pastiche de casar, constituir família, acumular patrimônio e exercer direitos civis reconhecidos pelo Estado.

Todo o livro é permeado por essa operação de converter os estigmas socialmente impostos aos desvios — que deveriam provocar vergonha— em algo que se assume com naturalidade e até com certa dose de um orgulho indiferente.

A todo momento, o protagonista vai descrevendo impulsivamente suas vivências sem nenhum filtro, em uma verborragia capaz de chocar até os olhares mais permissivos e libertinos.

Exemplo é a maneira como se retratam os diversos encontros sexuais causais e já automatizados. A maior parte dos personagens, aliás, entra em cena para algum tipo de ato sexual sem afeto —na sauna, nos banheiros públicos, nos bares e até mesmo em lugares mais tradicionais como a cama.

Outro ponto recorrente, sempre relacionado ao anterior, é o do estado sorológico do narrador, que pertence à geração que enfrentou parte do auge da epidemia de Aids e que vive com o espectro do vírus em uma complexa relação de culpabilização, moralidades e autopenitência.

Gay das antigas, negro sulista, viciado em drogas, vivendo com HIV e com um pinto pequeno —a intersecção de diversas condições que o põem em uma posição de marginalidade na sociedade e mesmo dentro daquela que seria a sua própria comunidade.

Somemos a tudo isso a precariedade dos laços pessoais e a insegurança das relações de trabalho. De um lado, a vida parece ser só solidão em meio a tantos encontros fortuitos. Afinal, poucos são os afetos que restaram da família e, no mundo social ampliado, todo mundo está buscando sexo e drogas.

De outro, emerge a dura realidade de um trabalhador que vive de bicos e outros tantos trabalhos informais e mal remunerados, de garçom a garoto de programa.

O livro, apesar de limitado enquanto obra literária pelo caráter fragmentário das memórias e que é agravado pelo estilo narrativo, tem o grande mérito de evidenciar a densidade e a pluralidade das identidades gays, contrariando o discurso hegemônico de que gays são todos iguais, sempre felizes e divertidos, em geral promíscuos e narcisistas.

O estereótipo da homogeneidade, como se fôssemos idênticos a um "outro" do suposto universal —homem cisgênero, heterossexual e branco—, é das maiores violências impostas à comunidade LGBTQIA+. É ótimo ter um livro como este para nos lembrar, sem pudores, o quanto somos diversos e violentos. Ao mesmo tempo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.