Descrição de chapéu LGBTQIA+

Ney Matogrosso se tornou ícone da homossexualidade rejeitando carregar bandeiras

Artista peitou a ditadura e pavimentou conquistas para a revolução sexual no país, mas se recusou a encampar causas

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Ney Matogrosso maquiado em show dos Secos & Molhados em 1974 

Ney Matogrosso maquiado em show dos Secos & Molhados em 1974  Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Madalena Schwartz

Renan Quinalha

Professor de direito da Unifesp e autor de 'Contra a Moral e os Bons Costumes: A Ditadura e a Repressão à Comunidade LGBT' (Companhia das Letras)

O ano de 1978 marcou uma crise na ditadura civil-militar e foi um marco na retomada das mobilizações da sociedade civil. De um lado, Geisel enviava ao Congresso a Emenda Constitucional nº 11, pondo fim aos atos institucionais e restabelecendo um conjunto de direitos individuais e políticos há tempos suspensos. De outro, as grandes greves no ABC e os movimentos feminista, negro e homossexual entravam em cena, tensionando os limites do processo de redemocratização do país.

No dia 30 de outubro daquele ano, o advogado Alcides Cunha enviou uma carta repleta de indignação ao ministro da Justiça e ao presidente da República porque, no dia anterior, teria sido exibido, na televisão, “um infeliz rapaz de maneiras afeminadas, cognominado ‘Ney Mato Grosso’, cuja triste e deplorável coreografia eivada de deboches e sandices despudoradas, chocou a grande maioria do público”.

Ao final, o carioca pedia ao governo que agisse para resgatar “uma atmosfera livre de tantas impurezas, profundamente degradantes”.

A democracia parecia estar num horizonte cada vez menos distante, se aproximando em ritmo “lento, gradual e seguro”, mas não para quem rebolasse demais. As fronteiras binárias e inegociáveis entre feminino e masculino não estavam indo embora junto com a ditadura.

Desde 1973, quando integrou os Secos & Molhados, Ney ficou reconhecido por suas interpretações e presença de palco. A mesma atuação que o tornou alvo privilegiado dos aparatos de vigilância e censura consolidou sua identidade artística, cativando um público cada vez mais amplo que se espelhava nele em um contexto de revolução dos costumes.

A despeito da sua voz até hoje inigualável, o cantor se beneficiou de uma imagem pública que sempre flertou com um erotismo provocador, uma sensualidade aflorada uma confusão intrigante entre gêneros.

As performances ousadas, combinando a exibição de partes do corpo definido e esguio com a voz de timbre agudo e certeiro, além da dança repleta de rebolados e outros trejeitos tidos como “afeminados”,
desde os tempos de Secos & Molhados, alimentavam apreensão, curiosidade e encantamento no público.

Contudo, a despeito de encarnar, em seu próprio corpo, uma afronta ao moralismo estreito, Ney sempre preferiu ostentar a natureza inclassificável de sua liberdade e nunca aceitou levantar bandeiras ou aderir abertamente aos movimentos coletivos pela liberação sexual no Brasil.

Mesmo sob a ditadura, que implementou uma série de políticas conservadoras no campo dos costumes, muita coisa vinha mudando. Ainda nos anos 1950, assumiu novas proporções o inconformismo da juventude que se rebelava contra o ideal burguês de família e as amarras da moral cristã. Uma contracultura pulsante se alastrou, politizando os corpos e afirmando a autonomia, o desejo e o direito ao prazer.

No Brasil, os anos 1960 e 1970, mesmo com as tentativas violentas de contenção, foram um terreno fértil para a produção e circulação culturais. Não porque a ditadura tenha sido tolerante, mas porque essas expressões do novo, que há tempos vinham sendo germinadas, irromperam pelas brechas do regime.

Diante de um regime autoritário e de uma sociedade careta, havia diversas maneiras de subverter os poderes estabelecidos. Alguns optaram pelos caminhos da ação política —resistência armada, adesão a um coletivo, organização em partidos, disputa institucional.

Outros priorizaram o embate com a ordem sexual por meio da subversão moral e da experimentação de outros modos de vida, sem esperar uma revolução para ter um orgasmo, nas palavras de Fernando Gabeira à época.

É na encruzilhada entre essas trilhas que se localiza a experiência estética e política que forjou os posicionamentos de Ney Matogrosso. Diante da resistência das esquerdas em assimilar a liberdade sexual e de gênero, o desbunde pareceu, para muitos, a política necessária e possível quando a caretice parecia ser bem distribuída em todos os campos do espectro ideológico.

O cantor Ney Matogrosso e o Secos & Molhados
O cantor Ney Matogrosso e o Secos & Molhados - Acervo UH/Folhapress

Desbunde era o termo usado por militantes mais tradicionais para designar indivíduos e grupos que abandonaram uma perspectiva de ação coletiva, idealizando uma desconexão do mundo por uma via individualista e hedonista, geralmente associada a drogas, sexo e artes.

Ney era um expoente dessa versão tipicamente brasileira da contracultura. Tanto que afirmou, em entrevista à BBC dois anos atrás, que “era do desbunde, que eles [a ditadura] [nos] odiavam tanto quanto quem tinha arma”. “Eu era o louco, que tomava ácido, fumava maconha, cabelo grande, hippie. Eles odiavam.”

O trauma com a homofobia e o machismo dentro das esquerdas, assim como a reprodução de métodos
autoritários por alguns desses agrupamentos, tinha uma razão de ser.

A influência do stalinismo espraiou, mundo afora, sua linha oficial moralista por meio dos partidos vinculados à Terceira Internacional. O mesmo ocorria em relação às variações materializadas nos regimes chinês e cubano, que ganhavam cada vez mais espaço nos trópicos.

No Brasil, havia a heterodoxa combinação dessa homofobia de esquerda com a ideologia católica e com um paradigma bem acentuado do velho machismo latino-americano.

Todos esses fatores colaboraram para decantar, mesmo na maior parte dos setores de oposição à ditadura, uma representação das homossexualidades como “desvio pequeno-burguês”, “decadência burguesa”, comportamento contrário à “moral revolucionária” ou ainda “degeneração” típica do “desbunde”.

Para setores hegemônicos das esquerdas, salvo raras e honrosas exceções, a tarefa da revolução social não parecia passar pela revolução sexual. Forjar uma sociedade socialista demandava combate contra a moral burguesa com seu hedonismo e individualismo.

Seria preciso controlar as paixões, devotas ao projeto político, aderentes a uma rigidez normativa e com os objetivos pessoais subsumidos aos propósitos da revolução. Reforçavam, portanto, padrões de virilidade do verdadeiro revolucionário, com sua sexualidade heteronormativa e patriarcal.

É nesse contexto que Ney se consagrava como símbolo da liberdade sexual, mas refratário a qualquer
coletivização que pudesse comprometer sua própria autonomia. Quando ele se projetou nacionalmente, já havia movimentações homossexuais nas ruas e nos palcos no Brasil, mas não um movimento
politicamente organizado.

Na segunda metade da década de 1970 é que o cenário começa a mudar. Em entrevista para a revista Isto É, em 1977, Ney se mostrava antenado e crítico em relação aos ensaios de organização política dos homossexuais então em curso.

“Não acredito em movimento de conscientização do homossexual. Você pode viver a sua vida perfeitamente sem precisar estar agregado a movimento, a nada. Nem política nem a coisa nenhuma. Acho que, se você se agregar, você já está se limitando.”

Essa resistência a uma atuação coletiva seguirá a tônica das suas intervenções sobre o tema. Foi só em 1978 que tiveram início as reuniões do Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais, nome logo substituído por Somos - Grupo de Afirmação da Identidade Homossexual, considerado precursor do movimento LGBTQIA+ brasileiro. Naquele ano, foi lançado o Lampião da Esquina, publicação de enorme impacto para a construção dessa comunidade no país.

É nas páginas do Lampião que Ney vai estreitar seus vínculos com essa comunidade, da qual vinha se tornando um porta-voz sem deixar de demarcar suas diferenças. Em entrevista publicada no jornal em 1979, ao mesmo tempo em que afirmou ser “uma pessoa muito intuitiva” e “não uma pessoa intelectual” por não parar para “pensar nessas coisas”, ele demonstrou ter consciência de seu papel em uma “política existencial” simplesmente por reivindicar o “direito de existir dessa forma”.

Nessa mesma entrevista, ele fez questão de frisar que não era “estandarte de nada”. “O que eu mostro às pessoas é um indivíduo livre, uma alma livre. Se a minha vida pode ajudar out ras pessoas, se o fato de me expor como me exponho pode ajudar outras pessoas, tudo bem. Agora não me coloquem estandarte nas mãos de jeito nenhum, pelo amor de Deus.”

Essas declarações revelam a complexidade da posição que o cantor sempre reivindicou. Estamos falando de alguém que, criado por um militar, decidiu dar pinta e se expor em tempos adversos e, mesmo sem ter intenção de ser estandarte, fez da sua existência um manifesto contra um Brasil que teima em ser conservador.

Ninguém é obrigado a se assumir publicamente. Tampouco há um dever de engajamento militante por causa da sexualidade ou da identidade de gênero dissidentes. Ser LGBTQIA+ não significa necessariamente levantar bandeiras, ainda que a posição subalterna de uma pessoa na ordem social e sexual vigente seja um convite tentador para atuar pela transformação da realidade.

Um artista do porte e com a projeção de Ney reivindicar a naturalidade de sua forma de ser e de desejar teve —e segue tendo— papel gigantesco na luta pelas liberdades sexuais. A imagem pública de um homem que se fez admirado não por reproduzir a masculinidade hegemônica, mas por questionar isso, tem potencial de inspirar pessoas a refletir sobre suas próprias certezas.

Além da saída do armário, a afirmação de uma identidade pela chave do orgulho —e não da vergonha— passa pela visibilização e reconhecimento entre pares. Nada mais efetivo para construir um novo regime de visibilidade das sexualidades dissidentes do que figuras públicas que ponham em xeque as convenções que se pretendem naturais.

Não há dúvida de que, do ponto de vista pessoal, a representatividade importa. Ter referências de pessoas LGBTQIA+ que se destaquem rompe o ciclo de estigmatização a que estão sujeitas cotidianamente.

Isso parece ser ainda mais válido num artista como Ney, que faz da ambiguidade de gênero e de uma política do corpo sua matéria-prima.

Portanto, ele tem sua dose de razão ao responder sobre as cobranças por protagonismo no “movimento gay” à BBC. “Eles dizem que eu não carrego a bandeira. A bandeira sou eu. Ou não sou? Eu sou a bandeira, eu não preciso carregar uma”, ele afirmou.

Ney já dava a cara à tapa no pior momento da ditadura e antes mesmo de surgir um movimento organizado de homossexuais no Brasil. Assim, não se trata de exigir que o artista atenda a um padrão panfletário de militância ou de cobrar que um homossexual se comporte segundo um manual de homonormatividade.

Foto de Ney Matogrosso que está em biografia lançada pela Companhia das Letras
Foto de Ney Matogrosso que está em biografia lançada pela Companhia das Letras - Reprodução

Dito isso, situação distinta é analisar criticamente os posicionamentos públicos de artistas, avaliando o impacto dessas declarações na sociedade.

Em 2017, foi publicada neste jornal uma entrevista com Ney que causou enorme polêmica. Na ocasião, ele afirmou que se “enquadrar como ‘o gay’ seria muito confortável para o sistema”. “Que gay o caralho. Eu sou um ser humano. O que faço com minha sexualidade não é a coisa mais importante na minha vida. Isso é um aspecto, de terceiro lugar.”

Dois aspectos chamam atenção no trecho, que tem algo de desabafo. O primeiro é a defesa de um humanismo abstrato em detrimento de uma identidade gay imposta desde fora.

É verdade que descobrimos ser LGBTQIA+ pelo olhar dos outros, por meio da ameaça da injúria que nos atravessa e constitui nossas subjetividades. A reação mais primária é querer destituir o outro do poder de nos nomear e classificar.

Mas ser gay se tornou, graças a lutas individuais e coletivas, muito mais do que uma inscrição de violência. É partilhar de uma subcultura, que Ney ajudou a construir, e ressignificar essa identidade —que nos é imposta— pela potência da diferença.

Assumir a sexualidade dissidente e se orgulhar dela são o primeiro e talvez mais grandioso ato para uma pessoa LGBTQIA+, porque representa a capacidade de conferir sentido autonomamente à sua própria experiência.

Infelizmente, nem toda pessoa LGBTQIA+ tem sua humanidade reconhecida no país que mais mata essa população. A dificuldade não é ser humano, é ser gay e respeitado. Daí a importância de reivindicar o concreto diante de um universal que é vazio.

Outro ponto é o de que a sexualidade seria um aspecto “de terceiro lugar”. É compreensível que o cantor queira ser reconhecido por seu trabalho, por suas realizações, para além de sua orientação sexual. Mas não é demais lembrar aqui que vivemos neste mundo que marca as pessoas que escapam da norma.

Não é todo dia que uma pessoa LGBTQIA+ completa 80 anos. Esse aniversário já seria motivo de sobra para celebração. Mas há muito mais. A luta por liberdades sexuais no Brasil avançou muito desde que ele subiu num palco pela primeira vez. Sua coragem, ousadia e altivez abriram caminhos para uma geração de artistas LGBTGIA+ que estão renovando a cena cultural.

Mas Ney não fez essa caminhada sozinho. Junto a ele, esteve um movimento LGBTQIA+ vigoroso, que lutou contra a ditadura, batalhou por apoio na sociedade, valorizou o trabalho de gays, lésbicas e trans.

Talvez, pondo vida e obra de Ney em perspectiva, o nosso desafio hoje seja o de pensar não uma política de libertação individual contraposta à atuação coletiva, mas a integração de ambas para que todos possam, em plena humanidade, ser e levantar as bandeiras que desejar.

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