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LGBTQIA+

Filme 'Mais que Amigos' fracassa na pretensão de conquistar plateia hétero

Mesmo diante de uma boa receptividade da crítica, a comédia romântica gay naufragou nas bilheterias do mundo todo

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São Paulo

Em inglês, a expressão "four-letter word" (palavra de quatro letras) diz respeito a um eufemismo para termos ofensivos ou chulos. "Fuck" (foda) é uma palavra de quatro letras. "Shit" (merda) também. Curiosamente, é uma palavra de quatro letras o título original da comédia romântica gay que acaba de estrear no Brasil: "Bros" (algo como "manos"), estrelada por Billy Eichner.

Por aqui, o título ganhou muito mais letras e se tornou "Mais que Amigos". Parece que a intenção era ser engraçado com um meme reciclado, por isso eu me recuso a escrever essa infâmia outra vez.

Luke Macfarlane e Billy Eichner em cena do filme "Mais que Amigos", de Nicholas Stoller
Luke Macfarlane e Billy Eichner em cena do filme "Mais que Amigos", de Nicholas Stoller - Divulgação

Sabe-se lá se o público se ofendeu com as partes chulas do filme, mas o fato é que ele naufragou nas bilheterias lá fora. Eichner alega que, apesar da ótima receptividade da crítica, a trama teve pouca penetração (pronto, começou) na audiência heterossexual.

Estaríamos diante de um caso de homofobia?

Agradeço à Folha pelo convite para desfilar numa passarela de cascas de banana, ao me escalar para ver o filme e comentá-lo sob a ótica de um homem hétero. Fico imaginando a reunião de pauta na Ilustrada: "Por que a gente não chama aquele barbudo do Cozinha Bruta? Até parece o Brutus do Popeye, kkkkk".
Confesso que é uma ideia gozada (vou tentar parar).

A chance de deslizar em palavras que possam ofender não é pequena —ela vale tanto para mim quanto para os roteiristas de "Bros", o próprio Eichner e Nicholas Stoller, também diretor da comédia. Como somos profissionais da escrita, não podemos recuar diante de tal desafio.

Comprei ingresso para a primeiríssima sessão do filme. Quinta-feira, às 16h30. A ocupação da sala era de seis pessoas. Eu, um casal gay, um casal hétero e uma mulher avulsa. Em defesa de "Bros", estavam às moscas as outras salas do cinema naquela tarde.

O personagem de Eichner é Bobby, ativista LGBTQIA+ 
—atualizei a sigla noutro texto sobre o mesmo filme, espero que esteja certa. Bobby é franzino, culto e de modos ásperos, tem fama como podcaster e trabalha na construção de um museu sobre a homossexualidade em Nova York.

Ele conhece Aaron, um advogado saradão vindo do interior. Apesar de gay, o rapagão vive num universo heteronormativo: música caipira, videogame, hóquei e uma postura, digamos, macha.

Nem Bobby nem Aaron querem um relacionamento sério. Eles se apaixonam e não sabem lidar com isso. Nasce daí a fagulha que incendeia toda comédia romântica: o amor improvável, o encaixe de duas almas incompatíveis.

Brega, né? Toda comédia romântica é assim. Se excluirmos bundas, torsos nus, cenas de sexo grupal, menções ao pênis e ao ânus, já vimos esse filme centenas de vezes. Começa com a frustração do desejo impossível e acaba com a apoteose do conto de fadas.

O gênero não me agrada em particular. Não gosto porque fui criado como um homem hétero? Imagino que sim, parcialmente. Agora, convenhamos que o desenrolar das tramas são absolutamente previsíveis, uma fórmula pronta em que basta substituir personagens, cenários e neuroses.

Logo no início de "Bros", Bobby recebe a proposta de escrever uma comédia romântica sobre homens gays. O executivo do outro lado da mesa argumenta que "amor é amor", mas Bobby refuta. O amor homossexual não é o mesmo dos héteros, tem enormes peculiaridades.

Como uma comédia romântica nunca falha, no final contemplamos a demonstração de que amor é amor, sim, apesar de alguns indivíduos colocarem dificuldades desnecessárias em seus caminhos.

Perfeito, estamos resolvidos na parte romântica. E a cômica? Humor é sempre humor, independentemente da natureza da piada, de quem conta e para quem? Tendo a pensar que não, e esta pode ser a razão do fracasso de "Bros".

Billy Eichner é um representante do humor cerebral judaico de Nova York, da estirpe de Woody Allen, Jerry Seinfeld e Larry David. Uma escola cômica arvorada em tiradas sarcásticas e autodepreciativas. O personagem Bobby é basicamente um chato que não consegue parar de falar, como o personagem de Allen em "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" ("Annie Hall", de 1977).

A graça que nasce da chatice tem méritos e fãs, mas não é um humor de fácil absorção. A coisa se complica quando o humor intelectual ranzinza, no caso de "Bros", opta por referências com que apenas os gays se identificam.

Nós, héteros, sabemos da obsessão pela Cher, pela Barbra Streisand e por outras divas. Temos plena noção da disputa interna pela representatividade de cada letrinha do LGBTQIA+. Sabemos até a dinâmica da sacanagem entre pessoas do mesmo sexo.

Ocorre que duas horas ininterruptas desses assuntos podem se tornar maçantes. O assunto poderia ser, sei lá, futebol. Eu, homem hétero sem gosto pelas artes da bola, jamais entraria num cinema para ver um longa sobre futebol.

Mas, como estamos falando de temáticas LGBTQIA+, a discussão logo ganha melindres e dimensão política.

"Bros" tinha a pretensão de conquistar o público hétero e fracassou nessa pretensão. Não me parece justo responsabilizar o público pelo fracasso.

Mais que Amigos

  • Quando Nos Cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Billy Eichner, Luke Macfarlane e Dot-Marie Jones
  • Produção EUA, 2022
  • Direção Nicholas Stoller
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