Estava todo mundo espremido um contra o outro, tentando ficar na ponta do pé e encostar o copo de cerveja na boca, quando de repente veio a voz. "Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada." Era a voz dela. "Agora não espero mais aquela madrugada."
Gal Costa chegou antes aos ouvidos que aos olhos da multidão que já começava a gritar junto, eufórica, sem ter como saber que naquele dia, no palco do Memorial da América Latina em São Paulo, ela estava fazendo o último show de sua carreira.
Não é pelo privilégio do retrospecto que este repórter, que esteve em um bom punhado de plateias de Gal na última década, percebeu naquela noite uma performance particularmente enérgica, pulsando a todo vapor com fogo próprio de uma artista no auge da animação.
Talvez fosse o clima de sábado de Coala Festival, de dezenas de milhares de jovens sedentos e ainda encharcados no rescaldo da banda Bala Desejo, composta por quatro garotos que exalam o mesmo aroma de liberdade doce e bárbara inaugurada por Gal e seus amigos baianos.
O vigor da cantora naquele palco era um tom além daquela que vinha se acostumando a performances mais contidas, à elegância decretada pela idade. Estava com um vestidão preto, sandálias no pé, convocando todos a cantar alto para espantar o frio daquela noite de setembro.
Uma força estranha remetia a entrega daquela noite a um frescor de juventude e descoberta, que parecia nutrir sua música de um tempo em que tudo era perigoso, divino e maravilhoso.
A escolha de repertório ficou dentro do costume. Gal exibia, como um mágico que encanta pela milésima vez com o mesmo truque, sua maneira de transformar em emoção as letras que tirou de Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Jobim, Milton Nascimento, Djavan —e Mallu Magalhães.
Assim, o público lamentava choroso que a verdade é seu dom de iludir; afirmava catártico que qualquer maneira de amor vale a pena; brincava faceiro que no peito dos desafinados também bate um coração; e rebolava triste com a história de uma rosa nunca, nunca mais feliz.
Ali pela metade da apresentação, Gal chamou dois intérpretes de gerações mais novas para se juntarem a ela. Tim Bernardes e Rubel, com quem gravou duetos em seu álbum de despedida, "Nenhuma Dor", a acompanharam à altura em alguns dos sucessos mais comoventes de sua carreira, como "Negro Amor", "Vapor Barato" e "Baby".
Em canções de sexualidade mais palpável —que falavam em esfregar a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu—, não demorou para que fãs se descabelassem pelos rapazes, nem para que Gal o percebesse. "Ah, se eu fosse mais jovem", brincou, enganando não se sabe a quem com a falsa modéstia.
Já perto do fim, lembrou que as eleições estavam na esquina e pediu para o público "votar direitinho" enquanto fazia a letra L com os dedos. A voltagem política contaminava a multidão, que se esgoelou em seguida perguntando ao Brasil qual é o teu negócio, o nome do teu sócio, confia em mim.
"Brasil", o manifesto de Cazuza, foi a música derradeira que Gal Costa ofereceu ao público —e também foi a última palavra que ela cantou num palco.
Eram tempos pré-eleitorais. Agora, que precisamos nos acostumar a viver em tempos pós-Gal Costa, talvez seja melhor lembrar a música com a qual abriu as cortinas do show —porque, quando se fala em deixar a sua luz brilhar e deixar o seu amor crescer, ninguém chega aos pés de Gal.
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