Liuba dá asas ao bronze com esculturas de pássaros em retrospectiva no MuBE

Apaixonada pela fauna e flora brasileira, artista búlgara esculpiu obras que parecem dotadas de desejo

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São Paulo

Num contínuo, o concreto armado se dá como teto ou sustentação do vazio. É um risco embrutecido, paralelo ao céu, agudo à linha do horizonte. Em baixo, o vão livre se preenche em correntes de ar, inflando a arquitetura do edifício. Do alto, a luz do sol mira, em ângulo reto, dezenas de esculturas, que parecem decolar daquela pista cimentada.

As esculturas aladas da artista Liuba - João Lucca Piovan/Divulgação

A mostra "LiubaCorpo Indomável", agora no Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia, o MuBE, reúne cerca de 200 obras da artista de origem búlgara, que emigrou para São Paulo nos anos 1950, fugindo da invasão russa. Ainda na Europa, Liuba adquiriu sólido repertório cultural, ingressando no conservatório de música e na escola de Belas Artes. Também era leitora ávida, das teorias de Sigmund Freud até a tradição da poesia francesa.

Em 1958, se casou com o empresário Ernesto Wolf. Com livre trânsito na elite brasileira, viajou o país e o mundo, acumulando experiências que se refletiriam em sua obra. Ainda que pertença à modernidade escultórica, as peças elaboradas pela artista não se limitaram ao construtivismo brasileiro, tendo ganhado singularidade no contexto artístico da segunda metade do século 20.

Organizada por Diego Matos, a exposição desnuda o processo criativo da artista, revelando dois aspectos centrais de sua personalidade —a erudição e a técnica. Liuba partia de desenhos, às vezes figurativos, para fazer um molde da peça em gesso. Nesse processo, era comum a artista representar o corpo feminino por diversas vezes até encontrar um corpo disforme, ou uma "besta", em suas palavras. Só depois fundia a estrutura alcançada ao bronze, sempre num tom escurecido.

Sob o aspecto visual, a cor introduz a primeira relação entre as peças dispostas em campo aberto e a construção do museu, que explicita a infinitude modernista desenhada pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Da calçada, se admira um jogo cromático dual, o preto das esculturas em bronze contra o cinza do concreto armado do edifício.

As estruturas —museu versus obras de arte— são vetores de sentidos opostos. A edificação aponta para a imanência, sedimentada em sua própria concretude. Já as peças de Liuba, parecem conter em si o desejo de se evolar do solo, abandonando o espaço onde estão fixadas. Grosso modo, a matéria quer sair da matéria, num equilíbrio entre uma força concêntrica e outra excêntrica.

Tal sensação tem origem num tensionamento interior às obras. Boa parte delas, ainda que abstratas, sugerem a figura de um pássaro, como indicado nos títulos. A visão tripartida de "Pássaro Noturno", de 1963, carrega a expressão de uma ave ao ataque. Em forma de L, é esculpido o corpo do bicho, de onde surgem duas asas pequenas e pontiagudas. Junto ao bico bem aberto, elas deixam a impressão de estarmos diante de um pássaro ferino.

À frente do espelho d’água do museu, está "Animal Alado", composta dois anos depois. Aqui, as asas são construídas de outro modo —uma aponta para o céu, em linha perpendicular, outra, surge inclinada, em diagonal.

Na peça, não identificamos se o rabo do animal pertence ao mesmo bloco do bico ou das asas, o que só denota o domínio técnico da artista. "Pássaro Caindo", concebida entre 1963 e 1965, imprime o sentido oposto. A força da escultura é negativa, ou seja, incide contra o solo —não para fora, como as demais. Por isso, o corpo da ave desaparece, fundido ao chão, enquanto rabo e asas apontam juntos para o céu, assim como ocorre nas quedas.

Se "Pássaro Noturno" ou "Animal Alado" usam a arquitetura da edificação como pista de decolagem, "Pássaro Caindo" colide numa pista de pouso. Liuba repetia à exaustão esculturas de pássaros, porque a fauna e flora do Brasil a fascinavam. Em meio às formas abstratas, a mostra reúne algumas peças, que insinuam a diversidade botânica do país, como num exemplar de cactáceo, típico do sertão.

Do mesmo modo, Liuba faz uma incursão pelo totemismo, criando esculturas que remetem a certo primitivismo transcendental. Mais uma vez, as peças se particularizam pela expressão, revelando duas verdades. Seres desejantes, as esculturas de Liuba passam a ser a imagem em bronze dos desejos do espectador. Afinal, Liuba era uma mulher europeia, mas uma artista brasileira.

Liuba - Corpo Indomável

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