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Tania Rivera

Ensaio mais estranho de Freud, com nova tradução, convida leitores a revirar a linguagem

Verter título em alemão para 'O Incômodo' é opção ousada, que ressalta experiência contemporânea de desamparo

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Tania Rivera

Ensaísta, psicanalista e professora da UFF (Universidade Federal Fluminense). Autora de "Lugares do Delírio. Arte e Expressão, Loucura e Política" (n-1 edições, no prelo), entre outros livros

[RESUMO]Em nova tradução no Brasil, a cargo de Paulo Sérgio de Souza Jr., o texto "Das Unheimliche" (1919), o mais estranho dos ensaios de Freud, ganha o título "O Incômodo", opção ousada e vigorosa que, em seus múltiplos e ambíguos significados, serve de modelo de uma subversão da relação do sujeito com a linguagem.

O texto "Das Unheimliche", de 1919, é certamente o mais estranho dos ensaios freudianos.

Ele põe em ato, em escrita e leitura, aquilo mesmo de que se trata com o termo de difícil tradução que lhe serve de título: uma oscilação entre o que seria doméstico, familiar, e algo radicalmente estrangeiro; uma inquietação que pode tomar matizes mais ou menos sinistros ou assustadores, entre horror e suspense, ou ainda certo desconforto que não deixa de carregar possibilidades de gozo e fruição.

Trata-se fundamentalmente de um desassossego em relação à própria linguagem, a exigir de nós, meros leitores, o engajamento em uma espécie de trabalho de tradução, quase tanto quanto é exigido dos próprios tradutores de Freud, que já verteram o título como "O Estranho", "O Inquietante" e, recentemente, "O Infamiliar", em português; "L’inquiétante étrangeté" ou "L’inquiétant", em francês; "Lo Siniestro" ou "Lo Ominoso", em espanhol —para mencionar apenas algumas línguas latinas.

Sigmund Freud em Londres, durante seu exílio - Reprodução

Como diz Proust dos belos livros, talvez o "unheimlich" se escreva sempre "em uma espécie de língua estrangeira". E sob esse termo, assim como sob "cada palavra", como dizia o escritor, cada um de nós talvez "ponha seu sentido ou ao menos sua imagem, que com frequência é um contrassenso".

Absolutamente consciente de sua lida com sentidos e contrassensos, o tradutor, editor e psicanalista Paulo Sérgio de Souza Jr. propõe que a rigorosamente intraduzível noção freudiana seja vertida para "O Incômodo", em novo livro que inaugura a coleção Pequena Biblioteca Invulgar da editora Blucher.

A opção é tão ousada quanto rigorosa: evitando neologismos e valorizando uma palavra quase banal, de modo a estranhá-la e desdobrá-la, ela faz ressoar o "cômodo" não apenas como confortável, mas como aposento, lugar a habitar —e do qual se pode sair.

O "incômodo" cresce então, a nossos olhos e ouvidos, como o oposto do íntimo, a alcova posta no meio da rua, digamos. Para Souza Jr., interessa especialmente a singular ambiguidade do prefixo in-, a indicar tanto um movimento rumo ao interior (como em imigrar [in-migrar]) quanto uma oposição (como em inação, por exemplo). Nessa chave, o incômodo é o que está em casa e, no entanto, é importuno, impróprio e, eventualmente, aflitivo.

Com esse termo, sublinha-se menos as cores do assustador e horripilante —que, apesar de espetaculares, não recobrem todo o campo do "unheimlich"—, para dar lugar à mais sutil e, no entanto, vigorosa "falta de orientação" salientada pelo psiquiatra Ernst A. Jentsch no texto "A Psicologia do Incômodo", de 1906, que serve de estopim para o texto freudiano e também compõe o volume da Blucher, tornando-se finalmente acessível em português.

"Se acontece algo de ‘incômodo’ para alguém", escreve o autor, "é porque esse alguém não se sente ‘em casa’, ‘acomodado’". Essa experiência de desamparo talvez marque, mais amplamente, a própria situação do sujeito contemporâneo. Afinal, como já enunciava Freud em 1917, "o eu não é mais senhor em sua própria casa".

Por outro lado, a aposta do tradutor na palavra incômodo implica um giro descolonial: em vez de buscar, eventualmente retorcendo a língua, um equivalente no português brasileiro que possa estar à altura do termo original, trata-se de ativar um saber de nossa própria língua que seja comparável à experiência "unheimlich" de Freud com o termo alemão.

Além disso, a escolha do termo é oriunda da posição de Souza Jr. como psicanalista —ou, mais precisamente, dessa modalidade de escuta que nos permite flutuar na língua, estranhando-a.

Ele conta que um analisante sonhou com sua casa de infância e foi tentando adjetivar isso que não chegou a ser um pesadelo, mas era "esquisito", "tinha algo de estranho", suscitava "medo" e "inquietação" etc. O tradutor vai reconhecendo nessas associações o desfiar dos termos usados por Freud no ensaio de 1919, até que o sonhador conclui com "não sei dizer direito… só sei que foi incômodo" —e o analista ouve nesta última palavra, surpreso, o termo "cômodo".

Uma estranha arquitetura do sujeito reverberava assim na palavra, subitamente, como a tocar uma dobra da língua portuguesa —uma prega no corpo, em sua relação com o espaço.

O "in-cômodo" parece, de fato, encarnar literalmente o atravessamento dentro-fora que muitas vezes me parece fundamental no "unheimlich" —entre imagem e fulguração do real, entre fantasia e realidade, eu e outro, o próprio e o impróprio etc.

O giro, entre um e outro, pode se dar na vida cotidiana, aqui e ali (e muitas vezes é esquecido), mas tem seu espaço cultural privilegiado na psicanálise, assim como na arte.

Qualificado de ninharia pelo próprio autor em carta ao discípulo Ferenczi, "O Incômodo" foi escrito concomitantemente ao grandioso "Além do Princípio do Prazer" e constitui uma espécie de duplo literário desse denso e rigoroso estudo conceitual a respeito da pulsão de morte.

Inicia-se por um longo panorama filológico do termo "unheimlich" em diversas línguas, como a acentuar, de saída, o deslizamento semântico e a impossibilidade de tradução exata como suas características fundamentais.

Em contraste com o conceito de pulsão de morte, bem definido e solidamente articulado ao edifício metapsicológico, ele transborda e desafia a apreensão teórica, obrigando o autor a modulações diversas que vão da minuciosa análise do conto "O Homem de Areia" de E.T.A. Hoffmann à menção de episódios pessoais, como aquele em que Freud tenta várias vezes sair da zona de meretrício de uma pequena cidade italiana, mas se vê invariável e inexplicavelmente de volta à mesma rua, repetidamente.

Nas entrelinhas do texto, entre o incômodo e Tânatos, o ensaio do alemão Peter-André Alt que fecha o volume sugere que não deixa de pulsar, latente, a história do psicanalista Viktor Tausk, que se mata no mesmo ano de 1919, após ter seu tratamento interrompido por sua analista, Helene Deutsch, a pedido de Freud (de quem esta era, por sua vez, paciente).

Há momentos da leitura em que parecemos nos aproximar de uma definição precisa, como quando Freud sublinha a concepção do filósofo Friedrich Schelling de "unheimlich" como "tudo aquilo que deveria permanecer em segredo, dissimulado, e veio à tona", que parece ecoar a noção psicanalítica de recalcamento.

E, principalmente, quando se alinha a Jentsh para apontar como caso notável de "incômodo" a situação de incerteza quanto a estarmos diante de um ser vivo ou um autômato (e identifica na literatura o terreno no qual se pode melhor provocar tal efeito), desfiando sua ligação com a figura do duplo, em sua oscilação entre o papel de garantia narcísica e o de anunciador da morte.

A característica que mais interessa a Freud no termo é, contudo, desnorteadora ao extremo, impedindo sua delimitação como tema ou mesmo nuance afetiva: trata-se da ambivalência que faz com que ele coincida com seu antônimo, "heimlich".

A capacidade de representação unitária e concomitante de um par de opostos já havia sido sublinhada pelo psicanalista nos sonhos, antes de ele dedicar um comentário à hipótese da "significação antitética das palavras primitivas" do filólogo Carl Abel, em 1910.

Com o "unhemlich", porém, o que podemos qualificar como uma verdadeira paixão freudiana pela torção topológica da significação encontra uma espécie de encarnação ideal. Nessa direção, podemos tomar o incômodo como modelo de uma subversão fundante da relação do sujeito com a linguagem —uma inquietação das palavras que a psicanálise, assim como a literatura, não cessa de pôr em jogo, na vida.

É nessa medida que a psicanálise seria ela mesma, para muitos, "incômoda", como reconhece Freud. E, justamente por se tratar de uma espécie de nomeação da própria lógica psicanalítica, é necessário invocar quase todos os fundamentos teóricos da doutrina para desdobrar o "unheimlich": além do já mencionado mecanismo de recalcamento, são trazidos na argumentação freudiana o complexo de Édipo e a ameaça de castração, o animismo e a onipotência dos pensamentos, o retorno do semelhante e a compulsão à repetição, a volta ao cômodo ventre materno e a inquietação de alguns homens frente à vagina etc.

Na atualidade, resta por trilhar (e estranhar, subvertendo) a interseção do incômodo com questões de gênero, diga-se de passagem, especialmente no que diz respeito à sua suposta localização no corpo biológico da mulher.

O trajeto do psicanalista pelos caminhos topológicos do incômodo é longo e um tanto tortuoso, assim como inquietantemente belo, como nos ajuda a perceber a elegante e precisa tradução de Paulo Sérgio de Souza Jr.

Ao buscar aparentemente situar essa noção, o texto freudiano nos convida como leitoras/es a deixar o comodismo de lado para nos aventurarmos em uma espécie de impertinência ativa e repetida, que revira a linguagem e a cena do mundo e talvez possa nos ajudar, hoje, a construir politicamente outros "in-cômodos". Novos lugares —para a gente.

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