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Em 'Sobre a Liberdade', Maggie Nelson combate as dicotomias radicais

Autora americana caminha por temas como arte, sexo, drogas e crise climática em ensaio acerca do que é ser livre na atualidade

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João Pereira Coutinho

Sobre a liberdade: Quatro canções sobre cuidado e repressão

  • Preço R$ 99,90 (284 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Maggie Nelson
  • Editora Companhia das Letras

Existe sempre uma alma de verdade nas coisas erradas. Assim falava Herbert Spencer, um dos mais dogmáticos pensadores que conheço. Foi distração, talvez, embora uma distração luminosa —o início do conhecimento pressupõe a recusa das dicotomias radicais.

É contra essas dicotomias que Maggie Nelson se insurge com o seu "Sobre a Liberdade: Quatro canções sobre Cuidado e Repressão". Como o nome indica, é um ensaio sobre a liberdade. Mas não sobre a liberdade na sua dimensão abstrata ou teleológica —aquele momento, no futuro, em que seremos finalmente livres.

A escritora americana Maggie Nelson Credito - Divulgação

Ser livre, na boa tradição aristotélica, significa uma práxis constante de liberdade interior. Acontece quando recusamos o "pensamento a crédito" de que fala um amigo meu, em homenagem a Montaigne, aquele pensamento prêt-à-porter que você aceita acriticamente porque é incapaz de usar a própria cabeça.

Para mostrar a falência do pensamento a crédito, a autora escolhe quatro áreas em que ele abunda —na arte, no sexo, nas drogas e no clima.

As melhores páginas do livro são as que lidam com os dois primeiros temas. Na arte, depois de um século em que era preciso "épater la bourgeoisie", se passou agora para uma "estética ortopédica" (expressão de Grant Kester) em que a função já não é chocar, mas cuidar e reparar. São atitudes semelhantes no seu funcionalismo moralista —e bastante próximas do funcionalismo moralista mais reacionário, para o qual a arte deve ser "respeitadora" e "decente".

Mas a liberdade artística não deve ser prisioneira de nenhum desses dogmatismos. "Uma arte é emancipada e emancipadora", dizia Jacques Rancière, "quando deixa de nos querer emancipar".

De igual forma, exigir de um artista que ele demonstre o mesmo tipo de "responsabilidade emocional" que esperamos de um familiar ou de um amante é uma projeção excessiva e paranoica.

Essa rigidez mental é igualmente recusada pela autora nas discussões sobre sexo. Quem pensa que as matérias íntimas podem ser divididas entre "libertação sexual vs. 'The Handmaid’s Tale'" deve tentar sair rapidamente da adolescência, sobretudo se já estiver na idade adulta.

O sexo é uma caminhada no bosque, escreve Maggie Nelson, uma aventura sem mapa que pode terminar muito bem, ou muito mal, ou nem uma coisa nem outra. Não falamos aqui de crimes, que habitam um outro patamar. Apenas das tentativas contemporâneas de afastar o sexo de qualquer "contaminação da ambivalência".

Como escreve Maggie Nelson, em brilhante adaptação das noções de liberdade positiva e negativa aos assuntos da alcova, o sexo não tem de ser liberdade para "procurar e se envolver em uma ampla variedade de relações sexuais sem regulamentação ou punição indevida"; mas também não é apenas liberdade de "assédio, discriminação, intimidação, coação, violência, tráfico".

Pode ser ambas, em graus diversos, consoante a diversidade de gostos e desgostos. Há quem aceite o risco, a rendição, a submissão. Há quem os recuse.

E, contra o feminismo mais radical, a autora também relembra que "gostar de pau" pode não ser uma imposição do patriarcado. As leis do desejo nem sempre respeitam as construções sociais.

Pensar livremente significa encontrar esses espaços onde o clichê não é rei. Ser a favor ou contra as drogas, em abstrato, significa pouco quando a discussão é mais ampla e mais profunda —o que significa ser humano?

Um herdeiro do iluminismo, para quem a razão é soberana, tenderá a olhar para esses "paraísos artificiais" (obrigado, "hypocrite poète") como uma traição à nossa superioridade racionalista. Mas como não admitir que a suspensão da racionalidade pode ser uma necessidade e, heresia das heresias, um inestimável prazer?

O inverso também pode ser verdadeiro. A sobriedade pode ser tão vital como o vício. E, contra o radicalismo pequeno-burguês, é absurdo ter uma admiração pela transgressão (dos outros) quando não a admitimos dentro de casa (em nossos filhos ou netos).

O essencial, para usar as palavras de Maggie Nelson, é recusar o binômio "fucked" ou "not fucked". Até em matéria climática —o derrotismo absoluto e o negacionismo absoluto bebem na mesma fonte, derrotando a possibilidade de escolhas significativas para lidar com o problema.

No fundo, talvez a liberdade seja isso, uma forma de existência que abre novas portas quando todos nos dizem que só existe um túnel estreito por onde devemos caminhar.

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