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Fama de Madonna entre novinhos diz mais sobre TikTok do que sobre ela

Rede virou um baú de onde músicas antigas são resgatadas o tempo todo, ainda que a obra da artista siga relevante

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Diogo Bachega

Estagiário da Ilustrada, estuda jornalismo na Universidade de São Paulo

Um levantamento publicado neste jornal apontou que a geração Z, a que pertenço, é a que mais ouve Madonna. A reportagem parte de dados da plataforma Chartmetric, que acompanha estatísticas das principais plataformas digitais, e da observação do TikTok, onde "Material Girl" se tornou a música mais ouvida há cerca de dois anos.

Os dados apontam um interesse renovado pela música de Madonna, e até pela figura da cantora, bem recebida na rede chinesa, onde publica vídeos de caras e bocas e mostra os bastidores do seu sucesso. Acredito que seja equivocado, no entanto, comparar esse engajamento com o furor de tempos atrás.

Para gerações anteriores, Madonna foi a musa definitiva, o símbolo maior de tempos de mudança, além de um fenômeno comercial meteórico. Para a minha geração, a cantora não tem a mesma centralidade. Quem vai além do TikTok e se aventura a escutar além de seus hits se encanta com uma ousadia que pouco envelheceu. Mas o espaço que ela ganhou entre os novinhos diz mais respeito ao consumo de música atual.

Madonna em fotografia do livro 'Sex'
Madonna em fotografia do livro 'Sex' - Steven Meisel/Reprodução

Alguns dados ajudam a entender a questão. Em uma pesquisa de 2021 feitas com americanos pelos laboratórios Dolby, empresa especializada em compressão e reprodução de áudio, quase metade dos entrevistados afirmaram ter descoberto recentemente alguma música de mais de dez anos atrás. Entre a geração Z, a porcentagem subiu para 70%.

O levantamento atesta um movimento que é muito claro para quem usa o TikTok diariamente. Há uma nostalgia generalizada, em que referências dos anos 1980 voltam com tudo e os anos 2000 começam a ser recuperados como estética popular. Dessa forma, a rede social virou uma grande escavadora de arquivos, onde são recuperadas pérolas de outras eras.

Exemplos não faltam. Em 2020, os usuários do TikTok, com seu conteúdo que quase sempre acaba escoando para o Instagram, recuperaram faixas de um álbum de 2008 do grupo canadense Mother Mother, "O My Heart". Assim, a banda conquistou um sucesso que nunca teve antes. Em outubro, vem para o Brasil, durante sua turnê pela América Latina.

A faixa "Rasputin", do grupo Boney M., sucesso dos anos 1970 e 1980, é outra que foi recuperada na plataforma e serviu de trilha para jovens de todos os gêneros que estavam sedentos por exibir seus corpos. Os sucessos românticos "Just the Two of Us", dos músicos Grover Washington e Bill Withers, e "It Must Have Been Love", do Roxette, são outros hits que explodiram na rede. A mesma coisa aconteceu com "Every Body Wants to Rule the World", de 1985, do Tears for Fears.

Isso não significa que Madonna seja só mais um nome em uma lista de artistas renovados. Pergunte a alguém mais novo quem foi Grover Washington ou quais eram os integrantes da Boney M. e poucos saberão responder. Pergunte quem é Madonna, e poucos não saberão.

Madonna é atual por ao menos dois motivos. Primeiro, porque ajudou a criar o modelo de diva pop, que hoje passa por transformações e abre espaço para novas propostas, mas ainda mantém a essência herdada da cantora. Depois, porque Madonna se mantém irreverente, e o mundo continua careta.

Sempre leio com certo ceticismo reportagens sobre a suposta repulsa generalizada a sexo da geração Z, que, suspeito, partem de um entendimento restritivo do que é sexo. A pulsão erótica não é menor entre os nossos e, quando a cantora diz que um companheiro a faz sentir como uma virgem tocada pela primeira vez, conversa com o desejo latente de novos ouvintes.

Em tempos permeados pelo conservadorismo religioso, a cantora também tem o que dizer. Se com "Montero", de 2021, e "J Christ", deste ano, o cantor Lil Nas X une referências religiosas a elementos sexuais e jocosos, algo parecido com o que Lady Gaga fez com "Judas", de 2011, Madonna em 1989 já chocava o bom cidadão com a sugestiva "Like a Prayer".

"Quando você chama meu nome/ é como uma pequena oração/ estou de joelhos/ quero te levar até lá", ela cantava, enquanto incendiava cruzes e beijava os pés de um Jesus negro para os Estados Unidos ainda mais racistas da época.

Lil Nas X se defendeu no X da acusação de estar tentando ser Madonna, dizendo que não se importa com o que elas fizeram e só quer fazer a arte dele. A verdade é que Madonna não criou a tradição de traçar paralelos entre religião e sexo, ainda que tenha se tornado uma referência para isso na música.

Lembro de uma discussão que tinha com a minha mãe, quando mais jovem, em torno da clássica polêmica entre "Express Yourself" e "Born this Way". Ela, a mesma que me apresentou Lady Gaga e seus clipes camp e por vezes homoeróticos, considerava a faixa da nova diva uma cópia da canção antiga. As próprias cantoras trocaram rusgas por causa das comparações.

Conflitos como esses rendem entretenimento para os que gostam de acompanhar os bastidores das celebridades, mas pouco importam. Ao contrário de Madonna, que manteve sua vitalidade, discussões geracionais do tipo "os nossos eram melhores" carregam ranço de velharia. Se os padrões de consumo de música mostram algo, é que, no gosto dos novos públicos, há espaço para a convivência pacífica entre ícones de diferentes épocas.

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