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Não queria estar no lugar de Gloria Perez e 'Travessia', admite autor de 'Todas as Flores'

João Emanuel Carneiro afirma que Globoplay permitiu que ele fizesse novela 'quase como um filme'

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São Paulo

A última leva de capítulos da primeira temporada de "Todas as Flores" chega ao fim no Globoplay nesta quarta, às 18h. A novela de João Emanuel Carneiro bem poderia estar na TV aberta, como era previsto inicialmente, mas perdeu a vez para "Travessia".

Perdeu, não. Melhor dizer que a troca foi um ganho para o autor. "Só tenho a celebrar, estou feliz da vida", diz ele a esta repórter, garantindo que não gostaria de estar no lugar de Gloria Perez.

João Emanuel Carneiro e Gloria Perez
Os autores João Emanuel Carneiro, de 'Todas as Flores', e Gloria Perez, de 'Travessia' - Estevam Avellar/Divulgação e Greg Salibian/Folhapress

Independentemente da percepção de crítica e público de que "Todas as Flores" seja bem superior a "Travessia", tanto no enredo como na finalização do produto, a cilada de estar na TV aberta agora parecia incontornável.

Além de suceder uma novela como "Pantanal", que promoveu uma conjunção de fatores felizes em torno de personagens adorados pelo público, Carneiro lembra que esses são dias difíceis para a TV aberta, ocupada pelo calendário de eleições, Copa do Mundo e festas de fim do ano, período de pouca retenção de audiência.

Fora isso, agora que temos 40 capítulos já disponíveis de "Todas as Flores", é possível assegurar que essa história não estaria sendo contada com a concisão que apresenta no streaming e nem de longe entregaria a ousadia das cenas de sexo que lá estão, caso estivesse na faixa nobre da TV aberta.

Depois desse último bloco de capítulos, os aficionados pelo enredo da doce menina cega enganada pela mãe, Zoé (Regina Casé) e pela irmã, Vanessa (Letícia Colin) só voltarão a reencontrar essas figuras em 5 de abril, quando o Globoplay dará início à segunda temporada da novela. Até lá, o streaming do Grupo Globo surfará em outra onda, a do BBB 23.

"Os 40 últimos capítulos são os de que eu mais gosto, a novela fica muito mais eletrizante", avisa Carneiro. "É a vingança da Maíra (Sophie Charlotte, a cega) e até que ponto ela vai se tornar ou não uma vilã, essa é também uma pergunta que a gente se faz."

Vanessa, a irmã malvada, não mostra qualquer ponto fraco ou justificativa para desfilar aquela vilania sem respiro, e Carneiro admite que se diverte com a possibilidade de dizer, por meio dela, atrocidades impensáveis —porque irracionais—, mas instintivas.

"Eu amo escrever a Vanessa, porque é poder falar tudo o que o seu inconsciente mais profundo quisesse esconder. Ela abre a boca e é uma coisa catártica. Acho que para a Colin, que faz a personagem, deve também ser uma catarse, para quem assiste também."

Fã de literatura russa, o autor compartilha da convicção de que personagens pérfidos exorcizam os desejos ruins do ser humano. Mas se é certo que Dostoiévski faz com que Raskolnikov mate por todos nós para que não o façamos, Carneiro lembra que, de certa forma, o leitor de "Crime e Castigo" torce pelo assassino ao compreender seus motivos, sentimento que Vanessa não desperta no telespectador.

"Raskolnikov está mais para Carminha", diz ele, em referência à sua vilã mais famosa, vivida por Adriana Esteves em "Avenida Brasil". "A Vanessa já é um caso mais extremo."

Quando Colin e Charlotte foram escaladas para a novela, a primeira seria Maíra —o autor mudou de ideia prontamente ao ver um teste de Charlotte como cega. "Ela foi extraordinária. Era dela o papel. E era difícil justamente por não ser uma chata vitimizada, isso é tão difícil de fazer."

Maíra é uma aula contra o capacitismo e a inserção de deficientes físicos na sociedade. Sem resvalar no didatismo, mostra como não menosprezar a capacidade de pessoas com alguma diferença. "Ser cega é uma condição, não uma condenação", diz a protagonista a Zoé.

Charlotte, Colin, Humberto Carrão e Caio Castro compõem o grupo que alimenta o roteiro do autor, que se diz muito satisfeito com essa "quadra".

Expert em subverter estereótipos, Carneiro também trouxe Regina Casé para o papel de mãe má, não só uma novidade na galeria de personagens da atriz, mas também uma antítese de dona Lurdes, seu personagem anterior na TV, na novela "Amor de Mãe".

Não contente com esse contraste, o autor colocou na boca de Zoé uma frase bastante emblemática de dona Lurdes: "Tua mãe tá aqui". Pronunciada na novela de Manuela Dias, isso era puro suco de amor materno. Agora, os espectadores capturam o afago de Zoé como um ato de perversidade diante de Maíra.

Carneiro jura que não é escárnio nem sarcasmo com dona Lurdes. Não conscientemente.

Na troca da TV aberta para o streaming, o dramaturgo enumera outras vantagens, a começar pela chance de ser mais conciso. "Tive a possibilidade de fazer uma obra muito mais fechada, com as pontas ligadas à trama central, de pesar a mão onde eu queria pesar."

"Eu pude forçar tudo isso e sobretudo pude fazer uma novela que eu sempre quis fazer, que é muito costurada cena por cena, como se fosse quase mesmo um filme."

É também um folhetim bem mais fechado que a definição clássica de telenovela. "Todas as Flores" não é guiada pela audiência, pela medição rigorosa de números aferidos diariamente pela Kantar Ibope, embora o autor admita que sempre há "um ventinho", uma reverberação em tempo de ser aproveitada ao longo do desenvolvimento da trama.

Mas Carneiro não teve de submeter a obra à resposta imediata do público e essa reação não pode ser mensurada na mesma proporção de uma novela vista pela TV linear, com capítulos exibidos diariamente.

Basta dizer que as gravações até o capítulo 85, que só irá ao ar no ano que vem, já serão finalizadas no set nos próximos dias, a poucos passos do Natal.

Embora não tenha perfil em rede social, o escritor sempre conta com amigos e conhecidos para lhe enviar memes e comentários que repercutem na internet. "Sou um analfabeto digital", confessa, sem nunca esquecer o quanto foi criticado em "Avenida Brasil" por desconhecer as vantagens que um pen drive dariam à vingança planejada por Nina (Débora Falabella) em "Avenida Brasil".

O pen-drive até tem lugar em "Todas as Flores", com ligeiro atraso, já que hoje há nuvens virtuais capazes de armazenar provas digitais, e funciona como um autodeboche do autor. "Consegui fazer o meu primeiro Pix na semana passada", diverte-se, "e hei de ter meu Instagram até o fim do ano".

Já das escolhas musicais ele faz questão de participar. Tango eletrônico, a exemplo do Bajo Fondo conhecido em "Avenida Brasil", não falta em suas novelas e é gênero novamente em voga aqui.

Quanto à música de abertura, "As Rosas Não Falam", foi a primeiríssima opção da equipe, mas a ideia de colocar Sophie Charlotte e Letícia Colin regravando o clássico de Cartola foi sugestão do diretor da TV Globo, Amauri Soares.

Aliás, "Todas as Flores" só chegará ao sinal aberto em setembro ou outubro de 2023, pela faixa das 23h, mesmo espaço destinado a "Verdades Secretas 2". O público que for acompanhar a história só por ali perderá os melhores ângulos das cenas de sexo entre Caio Castro e Letícia Colin, em sequências de tirar o fôlego do espectador, sempre ao som de "Face in The Crowd".

Mas a novela, como diz Carneiro, "não é um soft porn", de modo que mesmo que a ousadia sexual seja arrefecida, o essencial a ser mantido na versão para a Globo, a seu ver, é "a loucura" de Zoé e Vanessa, e "a audácia" dessa história.

Caso a trama tivesse seguido a estrada originalmente reservada a ela, no lugar de "Travessia", seria "uma outra novela".

"Eu não poderia pesar tanto, não teria essa coisa erótica tão forte, não teria uma história tão costurada só na trama central, teria que abrir para outros personagens, outras situações, fazer um painel mais amplo, para agradar mais gente."

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