Jeff Beck veio ao Brasil e disse à Folha que tinha 60 guitarras; releia entrevista

Um dos maiores guitarristas da história, astro morreu nesta terça-feira em decorrência de uma meningite bacteriana

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São Paulo

Morto nesta terça-feira (10) aos 78 anos em decorrência de uma meningite bacteriana, Jeff Beck, um dos maiores guitarristas da história do rock, concedeu uma entrevista ao atual diretor de Redação da Folha, Sérgio Dávila, em Londres, poucos dias antes de vir ao Brasil, em 1998.

Retrato de Jeff Beck em show no Greek Theatre em Los Angeles, nos Estados Unidos, em 2013
Retrato de Jeff Beck em show no Greek Theatre em Los Angeles, nos Estados Unidos, em 2013 - Kevin Winter/AFP

À época, Beck apresentou no Rio de Janeiro, em São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, dividindo o palco com o saxofonista Wayne Shorter, o baixista Randy Hope Taylor e o guitarrista Jennifer Batten, que tinham participado de gravação de um disco do astro.

Releia abaixo a reportagem, publicada em 15 de outubro de 1998.

Se Eric Clapton é Deus, como picharam há alguns anos numa parede de Londres, então Jeff Beck é o Messias. E a guitarra, óbvio, a "Bíblia" de ambos.

O guitarrista inglês Jeff Beck deve chegar amanhã ao Brasil para a mais aguardada apresentação deste Free Jazz Festival, que começa hoje no Rio, amanhã em São Paulo e tem shows em Porto Alegre e Curitiba.

Os ingressos para a noite (sábado no Rio, domingo em SP) em que divide o palco com o saxofonista Wayne Shorter esgotaram-se em tempo recorde na história do festival -menos de um mês depois de colocados à venda.

Jeff Beck, 54, nasceu em Wallington (Inglaterra). Substituiu Eric Clapton no legendário Yardbirds (onde foi substituído por Jimmy Page), ganhou fama e se consagrou como um virtuose do instrumento. É hoje uma espécie de metaguitarrista -é o guitarrista-referência dos guitarristas.

Para as apresentações no Brasil, ele traz o baterista Steve Alexander (ex-Duran Duran), o baixista Randy Hope Taylor (ex-Incognito) e a guitarrista Jennifer Batten (ex-Michael Jackson). "Não é minha banda definitiva, mas até pode vir a ser", disse ele.

O trio participou recentemente das gravações do próximo CD de Beck, ainda sem nome e data para sair. Uma coisa está definida: é instrumental. "Só cantei um blues meio sujo, mas devo guardar para o próximo", afirmou o guitarrista.

Beck recebeu a Folha e alguns jornalistas brasileiros para uma entrevista num hotel no centro de Londres. Leia a seguir os principais trechos da conversa.

Há pouco tempo você disse não saber onde fica Porto Alegre, onde acontece um de seus shows. Já descobriu? Só Deus sabe [risos]. Desculpe, serei geograficamente mais atento da próxima vez. É que viajo muito pouco. Por exemplo, nunca fui à Irlanda! Quer dizer, estive lá uma vez, mas tudo que vi foi a parte de trás da cabeça de um motorista de táxi e umas garrafas de [cerveja] Guiness.

Você já sabe o que vai tocar no Brasil? Rock, jazz, "free jazz"? "Beck music" (risos). Não é blues, jazz, rock, mas é livre ("free"), certamente. Tem melodia búlgara, até influência árabe. Coisas que já eram feitas quando o blues ainda nem existia. O Mistério das Vozes Búlgaras, por exemplo, maravilhoso, devia ser ouvido pelas pessoas da indústria musical.

Há muita música escondida. Não pode tudo girar em torno de um pop barato e meio safado. Quanto ao Brasil, é um problema, porque nunca estive lá, não sei o que tocar.

Tudo o que posso fazer é variar e mesclar as peças novas, que vêm obtendo bons resultados com os mais jovens, com coisas mais velhas. Devo tocar alguma coisa de "Blow by Blow" (75) e "Wired" (76), mas não muito, para não encher o saco com velharias.

Quantas guitarras você vai levar? Na última turnê, usei a mesma em todas as apresentações. Uma Stratocaster. Ela fica junto por mais tempo, não machuca as costas. Quando tento tocar outras, elas precisam ser batizadas, ser usadas por tanto tempo quanto esta que uso agora. Você não pode acelerar o envelhecimento de uma guitarra, então escolho uma e toco todos os dias até amaciar.

Quantas você tem? Em torno de 50 ou 60.

E carros? Quatorze. Já tive mais. São carros de colecionador. Infelizmente, não pude mais tomar conta deles. Sou comprometido com a música. Tinha de deixar algo de lado. Mas eles foram minha principal fonte de sanidade —mantinha minhas mãos ocupadas quando estava longe das guitarras.

Por que você não entrou na onda tecno, como vários roqueiros de sua geração? Estive em clubes onde você não acreditaria o que rola. Quando vi a Björk, a maneira como ela pula de estilos musicais e canta, achei fantástico. Não estou dizendo que quero fazer aquilo, mas o pessoal do tecno faz maravilhas com sons. Talvez não tenham aprendido escalas por 30 anos, não têm uma habilidade musical artística, mas eles transmitem sons, e isso me interessa.

Estou me questionando musicalmente nos últimos oito, nove anos, tentando pensar no que deveria estar fazendo. Não consigo ouvir uma rádio pop hoje em dia por mais de cinco minutos. É interessante, um ciclo se fechou —e a música está buscando a mesma inspiração em si, de novo.

Como você se sente quando o chamam de melhor guitarrista da atualidade? Não sei como chegaram a essa conclusão. Eric Clapton sempre foi visto como o melhor. Clapton é muito esperto, aprendeu a cantar, coisa que eu sempre me recusei a fazer. Ele vende 15 milhões de discos sem piscar. Mas não sei de onde vêm esses títulos meio forçados. Existem guitarristas mais profissionais que eu.

Cite dois ou três. Django Reinhardt.

E Jimi Hendrix? Ele quase me destruiu. Estava na depressão pós-Yardbirds, e ele apareceu. Quando o ouvi, fiquei maravilhado. Pensei: o que farei agora? Minha carreira não tem mais sentido. Mas foi estúpido pensar assim. Era um desafio.

O que você faz quando não toca? Aproveito a vida, reformo carros, cuido do meu jardim. Certas coisas me parecem mais importantes agora. Não iria a uma festa de rock hoje em dia. Ainda gosto da minha privacidade. Como não sou um cantor, não estou no mundo pop, posso simplesmente desaparecer sem deixar traço.

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