O nome do filme, "Alegria É a Prova dos Nove", Helena Ignez foi buscar em Oswald de Andrade. Mas o nome também poderia ser "A Mulher de Todos 2" ou algo assim, tão forte é a maneira como a personagem evoca a Angela Carne e Osso do filme de 1969 em sua postura —vitalidade, postura de desafio às convenções, audácia, histeria febril, debochada.
Cinquenta anos se passaram, o mundo mudou, mas o espírito rebelde continua intacto, apenas mudou o
nome. Ela agora se chama Jarda Ícone (é a própria Helena Ignez, claro), sexóloga, ex-hippie (ou talvez ainda hippie) em atividade pós-pornô, carregando uma imensa genitália feminina e a apresentando a outras mulheres. Ou antes, apresentando a elas o orgasmo, o corpo, o sexo como modo de autoconhecimento.
Num outro registro, Jarda nos introduz a seu passado. Um velho filme entra em superposição e nos introduz ao Saara. Ali Jarda vive seu amor e seu exílio. Esse amor viverá com ela —o reencontraremos na figura de Ney Matogrosso— e compõe o segundo bloco do filme. Nele, Jarda é uma mulher realizada, completa. Enfrenta até um estupro como se nada houvesse acontecido.
Mas seu campo de batalha preferencial é o presente. O passado existe principalmente para o iluminar. Suas discípulas devem aprender a cultivar um corpo em rebelião ao mundo estabelecido. Podem começar consigo mesmas e com os próprios corpos, mas não podem parar por aí.
Existe o amor, ou antes, a paixão. E ela pode estar acima de tudo, como bem ilustram as relações entre uma de suas discípulas e o palestino Ahmad, que vive em uma ocupação e se recusa a ter
relações sexuais antes do casamento, já que Alá não o permite e Alá tudo vê, de acordo com ele. Mas ela está apaixonada. Vamos em frente.
Helena Ignez sempre encontra uma brecha onde introduzir a rebelião, através da qual desafiar o mundo instituído, tornar evidente seu desgosto com o mundo como se apresenta. Esse modo anarquista de pensar aproxima Jarda e o filme de Rimbauld, de um surrealismo que admitia que a verdadeira vida está ausente, que é preciso mudar o corpo a partir da poesia.
O movimento de libertação se afirma a cada plano, a cada imagem que é uma afirmação do corpo e uma busca de plenitude corporal (feminina, no caso) que se faz pela ruptura. O filme cutuca um mundo satisfeito consigo mesmo e com as precariedades do presente; não se contenta em trazer a necessidade do orgasmo feminino —afirma ao mesmo tempo o amor como maneira de sentir a vida e a paixão como perigo (a ser enfrentado, pois é a vida).
Difícil de ser traduzido em palavras, esse manifesto enfrenta com força o risco de parecer ingênuo quando inserido num mundo tão diferente daquele dos hippies, do underground, no entanto algo permanece e se afirma —o desejo de saber, de conhecer a vida e o próprio desejo. Helena Ignez ressuscita as distantes ideias de 1968 e as traz à vida novas, intactas, prontas a iluminar —e esse é o seu mistério.
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