Descrição de chapéu
Livros América Latina

Quem é autora Aurora Venturini, premiada aos 85 anos por 'As Primas'

Em primeira obra da autora traduzida no Brasil, narradora com deficiência usa pintura e escrita como forma de sobreviver

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Luisa Destri

Doutora em literatura brasileira pela USP e coautora de "Eu e Não Outra - A Vida Intensa de Hilda Hilst"

As Primas

  • Preço R$ 64,90 (160 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Aurora Venturini
  • Editora Fósforo
  • Tradução Mariana Sanchez

Quando recebeu por "As Primas" o prêmio Nueva Novela, sob o pseudônimo Beatriz Portinari, Aurora Venturini tinha 85 anos. Havia publicado dezenas de livros, entre prosa de ficção e poesia, e acumulava episódios excêntricos em sua mitologia pessoal.

Compareceu ao prêmio de entrega "com uma atitude punk", como lembra no prefácio à edição brasileira a escritora Mariana Enriquez, que participou como pré-jurada da edição de 2007. Na ocasião, sua figura deve ter surgido como a confirmação do estilo impresso na narrativa, num misto de enfrentamento, sarcasmo e provocação.

Capa do livro 'As Primas', de Aurora Venturini
Detalhe de ilustração da capa do livro 'As Primas', de Aurora Venturini - Divulgação

O livro intriga desde o início. O primeiro capítulo é uma abertura no sentido forte do termo. A situação familiar, em torno da qual se desenvolve a trama, apresenta-se de saída: a mãe, professora severa, abandonada pelo marido logo após o casamento.

A irmã, Betina, e a própria narradora, Yuna, pessoas com deficiência —todas "um erro da natureza", como esta qualifica, vivendo numa "chacrinha" miserável, à base de ensopado, embora servidas por Rufina, uma "escurinha muito sensata que trabalha de doméstica". Em apenas seis parágrafos se anunciam o contexto e os afetos a desenvolver. "Não éramos comuns, para não dizer que não éramos normais."

O ambiente é a cidade de La Plata, nos arredores de Buenos Aires, na década de 1940, uma estrutura social formada por famílias patriarcais e machistas, capaz de vitimar de inúmeras maneiras mulheres como aquelas ao redor de Yuna, que não podem encontrar amparo e segurança no casamento. Não à toa, os eventos trágicos que compõem o enredo estão relacionados à vida sexual das personagens, como adultérios, aborto, abuso, prostituição.

Tirando o melhor partido da narração em primeira pessoa, o livro se apresenta como um texto escrito por Yuna, com breves reflexões metalinguísticas e passagens endereçadas diretamente ao leitor. Essa configuração é responsável por ao menos dois de seus principais trunfos.

Em primeiro lugar, a consistência do ponto de vista, produto do jogo constante entre o que a narradora deseja mostrar e o que efetivamente nos deixa ver. Crueldades como as que comete em relação a Betina, desvarios como os de tia Nené em relação à mãe e afetos pungentes como os de sua relação com Petra, a prima do título, surgem todos na mesma modulação dos relatos cotidianos, cabendo ao leitor distinguir sua intensidade. A perspectiva insólita se sobrepõe, assim, ao caráter excessivamente trágico dos eventos, que de outro modo poderia comprometer a constituição do romance.

Em segundo está a costura admirável entre escrita e pensamento. Yuna diz ter dislalia, distúrbio que a impede de articular a fala. Embora se destaque como pintora —se desenvolvendo na carreira e ganhando reconhecimento nacional com o apoio de um professor que também ocupará o centro da trama—, confessa a todo momento temer ser vista como deficiente e faz da escrita o modo de superar a dificuldade de comunicação.

É nessa ambivalência que Yuna poderá fundar sua força. De um lado, a dislalia parece se associar ao talento para a pintura, já que tudo o que a afeta se transforma não em linguagem verbal, mas nas imagens que tornam seus quadros célebres.

De outro, o desejo de curar-se do distúrbio é que a leva a escrever: ao aperfeiçoar a linguagem, processo que vemos acontecer ao longo do livro, acabará por aperfeiçoar também a sua capacidade de observar o entorno, posicionar-se no mundo e elaborar o que lhe acontece.

Encontrando na arte e na escrita a possibilidade de emancipar-se em um contexto de tantas limitações e violências, Yuna constrói para si um destino único entre as mulheres de sua convivência. Por se tratar de um destino individual, poderia ser o caso de se ver em As primas uma história de superação —se esta palavra não estivesse tão gasta por narrativas que se limitam a valorizar no indivíduo a capacidade de acumular prestígio social e bens materiais.

Não há, além disso, nada de exemplar na trajetória da protagonista, e o romance rejeita qualquer perspectiva edificante. É o que sugere um pensamento de Yuna que, graças ao foco narrativo, podemos ler como irônico: "Eu era mais uma peça do excepcional status degenerado, mal e mal aproximado à pura raça humana em sua perfeita natureza".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.