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'Watt' e 'Murphy' são ótimas portas de entrada para literatura de Beckett

Livros do modernista irlandês põem o leitor no limite e o desafiam a ver o mundo e a ler a linguagem com outros olhos

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Kelvin Falcão Klein
Rio de Janeiro

Samuel Beckett, autor de romances, peças de teatro e poesia —obras escritas tanto em inglês quanto em francês—, é amplamente reconhecido como um dos marcos do modernismo literário do século 20.

Pegando o bastão de figuras como James Joyce, Marcel Proust e Virginia Woolf, Beckett se consolidou como um artista em permanente luta contra as convenções da literatura e as artimanhas da "lógica" e da "razão". Seus dois primeiros romances, "Murphy", de 1938, e "Watt", de 1953, se apresentam como ótimas portas de entrada ao complexo universo do autor.

O escritor Samuel Beckett em retrato feito por Henri Cartier-Bresson
O escritor Samuel Beckett em retrato feito por Henri Cartier-Bresson - Henri Cartier-Bresson/Magnum Photos/National Portrait Gallery

A edição recente da Companhia das Letras de "Murphy" repete aquela feita pela Cosac Naify em 2013, com posfácio de Nuno Ramos, tradução e notas de Fábio de Souza Andrade; "Watt", por sua vez, é inédito, contando com o mesmo tradutor (que também assina um posfácio) e com ensaios de Luciano Gatti e Ruby Cohn.

O material de apoio acrescentado ao texto é bem-vindo, ajuda a localizar os romances no tempo e no espaço, apontando com precisão os contatos entre essas obras iniciais e aquelas mais conhecidas de Beckett, como as peças "Esperando Godot" e "Fim de Partida", e sua trilogia romanesca composta por "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável".

"Murphy" tem um tom geral jocoso, com personagens claramente identificáveis, como é o caso da senhorita Dew. "Não era uma médium profissional comum, seus métodos eram excêntricos e originais. Talvez fosse capaz de produzir torrentes de ectoplasma ou de fazer jorrar de suas axilas anêmonas perfumadas, mas deixada tranquila, uma mão sobre uma bota comum, outra sobre a mesa, sabia fazer os mortos bajularem os vivos em sete línguas."

"Watt" é um romance que exige mais do leitor, com sua construção em cenas não cronológicas e sua experimentação com a linguagem. "Quando já não se é jovem, mas ainda não se é velho, pensar que se deixou de ser jovem, mas ainda não se é velho, isso é talvez uma coisa e tanto."

Apesar de dar título ao livro, Murphy não é presença constante na trama, além de não contar com uma descrição substancial de seu passado, por exemplo. No entanto, ele ocupa os planos e interesses de boa parte dos outros personagens, que se reúnem como em uma comitiva para a busca final pelo protagonista.

A condição de obra clássica não prejudica a fluidez do texto de Beckett em "Murphy". Os diálogos são vívidos e divertidos, os personagens, pitorescos em suas idiossincrasias, são delineados a partir de ações e decisões (subir as escadas, ligar a calefação, dar um beijo de língua). A narrativa borbulha com referências filosóficas, piadas de bar, trocadilhos e intromissões irônicas do narrador onisciente.

O escritor irlandês Samuel Becket - John Minihan

A passagem de um romance a outro mostra a intensificação do processo de afastamento de Beckett das regras literárias de construção de cenas e personagens. Se "Murphy" carrega muito das intensas leituras juvenis (filosofia pré-socrática, história da arte), "Watt" é marcado pela angústia acachapante da experiência de Beckett na Segunda Guerra Mundial (membro da Resistência, ele se escondeu da Gestapo no interior da França, onde escreveu a obra).

"Watt" também é centrado em um protagonista, mas é difícil saber onde ele está, de onde vem, para onde vai. Fica claro que Watt trabalha para o senhor Knott, em cuja casa está, mas, dada as metamorfoses recorrentes do narrador e dos personagens, qualquer certeza se esvai rapidamente.

A obra de Beckett gerou, nas últimas décadas, uma variedade impressionante de interpretações e comentários críticos —daí a importância do aparato nas edições. É um prazer suplementar acompanhar a inventividade dessas leituras, sustentada pela densidade das referências mobilizadas por Beckett.

Em vários momentos, sua ficção põe o leitor no limite —da paciência, da atenção, da compreensão—, mas é precisamente na expansão da zona de conforto (cognitivo, cultural) que está seu principal atrativo —ver o mundo e ler a linguagem com outros olhos.

'Watt' e 'Murphy'

  • Preço R$ 129,90 (384 págs.) e R$ 114,90 (272 págs.)
  • Autoria Samuel Beckett
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Fabio de Souza Andrade
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