Descrição de chapéu

Burt Bacharach fará falta em mundo de músicas sutis como um ChatGPT

Por trás de 'I Say a Little Prayer', músico morto aos 94 anos compôs com precisão que só não era irritante por ser impecável

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O incomparável Burt Bacharach, autor de "Horizonte Perdido", morto nesta quinta, nos Estados Unidos, aos 94 anos, havia posto, em 1973, na cabeça deste garoto, que hoje aqui escreve, a ideia de que é possível sim escrever uma canção impecável, algo que procuro até hoje no mundo pop.

De quase todo o cânone dos Beatles ao refrão irreparável de "Kill Bill", de SZA, essa é uma busca incansável, seja de artistas ou de críticos.

O compositor Burt Bacharach - Reuters/Tim Wimborne

Alguns artistas, brasileiros (como Lulu Santos) e internacionais (como Morrissey), têm a impressionante maestria para implantar harmonias impecáveis e arranjos memoráveis em nossa memória musical coletiva. E todos, inevitavelmente, ainda que indiretamente, estão conectados ao gênio de Bacharach.

Raros foram seus descendentes que pagaram esse tributo declaradamente —uma homenagem de Elvis Costello ao seu ídolo me vem à mente. Mas todas as preciosidades da história do pop devem algo a Burt Bacharach.

Seu primeiro hit foi "Make It Easy on Yourself", gravada por Jerry Butler em 1963. Mas foi preciso ele encontrar o veículo certo para um reconhecimento maior, e ele veio na sua parceria com a sensacional Dionne Warwick.

Na sua voz, quase um instrumento na imaginação criativa de Bacharach, vieram hits e mais hits, em construções que só pareciam simples porque eram, justamente, intrincadas. Pegue "I Say aLittle Prayer" como exemplo.

Warwick, claro, gravou a faixa antes de Aretha Franklin, que talvez nos ofereceu a versão definitiva desse clássico pop. Não importa qual é a sua interpretação favorita —o que mais chama atenção em "Prayer" é como ela não se parece como uma canção qualquer.

De início, a introdução passa a impressão de que você já começou ouvindo a música no meio. Sabe a faixa "Get Lucky", do Daft Punk, que você escuta achando que entrou numa festa que já está bombando? Então, é isso.

Antes mesmo de a voz potente de Aretha Franklin contar que, na hora em que ela levanta e antes de ela passar a maquiagem algo acontece, um coral feminino já anunciou que esse algo é uma pequena oração para seu amado.

Na sequência, reviravoltas vocais e de harmonia confundem todas as convenções do que é estrofe e coro. E o último minuto de "I Say a Little Prayer" é um canto aparentemente improvisado, solto, mas que foi perfeitamente confeccionado como uma peça de ouriversaria musical por Burt Bacharach.

Pode pegar "I’ll Never Fall in Love Again", com um jogo de perguntas e respostas que simula ora um papo franco diante do espelho, ora uma conversa jogada fora às quatro da manhã com um melhor amigo que você fez naquela noite.

Ou "Do You Know the Way to San José?", que traz a façanha de ser construída toda em cima de uma pergunta e ainda termina com a sensação que fomos largados no meio de uma estrada enquanto pessoas mais descomplicadas que nós foram buscar a felicidade no fim de uma estrada. Tudo que Bacharach compôs é de uma precisão que só não é irritante porque é sublime.

Hoje, quando a maioria dos hits que alcançam milhões de ouvintes nos serviços de streaming são elaboradas com a sutileza de um ChatGPT musical, a mágica de BurtBacharach —que fazia a criação de uma pérola pop parecer simples até demais— parece mais um dom divino.

Bacharach fará muita falta num universo musical que se contenta em pôr um refrão malandro numa batida que emula um reggaeton.

"Cheap Thrills", ou "emoções baratas", como SIA já cantou, vão sempre nos lembrar de que a conquista da música perfeita é inalcançável, mas o caminho até ela pode ser algo delicioso. E vai sempre ter que pagar um pedágio na estrada para San José.

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