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Como Glória Maria, a maior jornalista negra, enfrentou o racismo

Apresentadora mostrou que negros podem ter versatilidade para reportar, entrevistar e viajar sem barreiras pelo mundo

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Quando morre o primeiro de sua espécie, é o momento de parar e se perguntar: quanto será que evoluímos até aqui? Glória Maria, que morreu nesta quinta-feira (2) aos 73 anos vítima de um câncer, foi a preta primogênita da profissão que pouco avançou entre os negros —o jornalista de TV.

Entrevista com Glória Maria, jornalista, repórter e apresentadora de televisão, realizado no restaurante do Copacabana Palace, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ) - Ricardo Borges/Folhapress

Glória era tão fina e elegante que, com o passar dos anos, sua imagem e nome se fundiram a uma ideia de quem ela era. Aos poucos, o público esqueceu de sua origem e, principalmente, de sua cor. Convenhamos que, para uma jornalista negra no Brasil, isso é um privilégio sem precedentes.

Seu sorriso e leveza ao falar sobre qualquer assunto mostraram que os negros podem debater sobre qualquer tema e não apenas contribuir com as páginas policiais. Glória teve a ousadia de elevar a imagem do jornalista de descendência afro a um nível ainda inalcançado para nós.

Os negros ainda precisam ter coragem para ser jornalista nesse país. Certa vez, meu companheiro de profissão e de raça Tayguara Ribeiro disse em uma reunião de jornalista negros deste jornal que, enquanto nossos colegas brancos escondiam seus crachás durante as manifestações, nós pretos deixávamos ele à mostra, pendurado em um cordão sob o pescoço. "Prefiro ser agredido por ser jornalista do que por ser negro", ele resumiu.

À primeira vista, Glória dificilmente transparecia nervosismo e não se sentia uma impostora —quando digo impostor, é porque na maioria das vezes não nos sentimos aceitos pela profissão. Mesmo em situação de saia justa, como a famosa entrevista de 1985 com Freddie Mercury, Glória, como referência de mulher preta periférica, teve jogo de cintura suficiente para sair da situação, mesmo sem ter fluência no inglês.

Exemplo para nós jornalista pretos quando somos vítimas de racismo durante o exercício da profissão. Se engana quem acha que geralmente o preconceito com o repórter negro é velado. Pelo contrário. Na maioria das vezes, é escrachado e muito direto.

Com Glória não foi diferente. Insultos racistas como "tira aquela neguinha da Globo daqui", ouvidos por ela durante a gestão do ex-presidente João Figueiredo, eram comuns, ela dizia. Mas, assim como Pelé, Glória preferia não acreditar no racismo.

Polêmicas à parte, só quem viveu sabe o que passou, e isso não diminui em nada todo o apreço que a classe tem por sua maior professora. Glória foi criada em outros tempos, te mpos em que o mínimo de afeição dada a um negro era o mesmo sentimento que ganhar na loteria de ano novo.

Durante a entrevista no Roda Viva, em março passado, Glória diz que aprendeu a se blindar e nada mais a fazia entristecer. A jornalista nos deixa uma lição: o racismo é do outro, não nosso. Não devemos nos encolher diante da pequenez alheia, porque isso é loucura.

No fim, Glória era a mais negra dos negros da sua geração. A falta de âncoras pretos na TV Globo nos obriga a reverenciar a mulher que abriu as portas para jornalistas tão importantes hoje na emissora, como Maria Julia Coutinho, Zileide Silva, Aline Midlej e Lilian Ribeiro.

Vale frisar que o legado de Glória foi deixado muito antes da sua morte. Sua versatilidade em apresentar, entrevistar, viajar pelo mundo e até fumar maconha durante o trabalho mostrou que está no nosso sangue negro a garra suficiente para irmos onde quisermos.

Aos colegas negros de profissão que estão chegando, estudem e se inspirem na maior jornalista negra que tivemos. Aos que ocupam a cadeira de repórter já há um tempo, sempre nos lembremos que somos ancestrais de quem está por vir e, como foi Glória Maria, quando partirmos sejamos inspiração para os negros que nos acompanharam.

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