Descrição de chapéu Televisão

Morre Glória Maria, um ícone do jornalismo e uma pioneira na TV brasileira

Apresentadora tinha câncer no cérebro, mas tratamento deixou de fazer efeito nos últimos dias, segundo informou a Globo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Retrato de Glória Maria

Retrato de Glória Maria Léo Aversa/Agência O Globo

São Paulo

Morreu na manhã desta quinta-feira, aos 73 anos, a jornalista Glória Maria, vítima de um câncer. A informação foi confirmada pela TV Globo em nota enviada à imprensa. Segundo a emissora, o tratamento que Glória fazia para combater as metástases que existiam em seu cérebro deixaram de fazer efeito nos últimos dias.

Retrato de Glória Maria em 1980
Retrato de Glória Maria em 1980 - Otávio Magalhães/Agência O Globo

Em 2019, ela descobriu um tumor no cérebro, tendo enfrentado o problema com cirurgia e imunoterapia. Em dezembro passado, a Globo informou que ela estava afastada da TV para tratar da saúde, mas acrescentou que isso já era previsto como parte do tratamento contra o tumor cerebral.

A idade a ela atribuída era de 73 anos, mas Glória nunca confirmou a informação. Em entrevista a Mano Brown no podcast "Mano a Mano", disse que gostava de driblar a curiosidade das pessoas. "Não tem dados para provar, e eu invento. Ninguém vai conseguir bater 'lé' com 'cré' porque eu confundi tanto que ninguém vai conseguir fazer a conta. E não é para esconder. É questão de cultura familiar."

Primeira pessoa negra a conquistar espaço diante das câmeras no telejornalismo brasileiro, Glória foi pioneira como mulher na cobertura de guerra e rompeu a hegemonia branca também na apresentação de programas na principal emissora de TV do país, tendo sido a primeira profissional a entrar ao vivo no Jornal Nacional em cores, em 1977.

Seu legado está no espelho que construiu para tantas negras de várias gerações, que viam nela uma referência e esperança de estarem na TV. A jornalista nunca trabalhou para outra empresa que não fosse a Globo, onde ingressou ainda em 1970, como estagiária, tendo apresentado sua primeira reportagem em 1971, sobre a queda do viaduto Paulo Frontim, no Rio de Janeiro.

Mas, naquele início, o repórter não aparecia no vídeo, e os telespectadores podiam apenas ter como pista uma mão de outra cor a segurar o microfone. Quando enfim pôde mostrar o rosto na tela, o público já havia se habituado à sua voz.

Glória comandou o Fantástico entre 1998 e 2007 e, mais tarde, o Globo Repórter. Antes disso, foi âncora do RJ TV, do Bom Dia Rio e do Jornal Hoje.

Como repórter, viajou por mais de cem países. Cobriu a posse do presidente Jimmy Carter em Washington, em 1977, e a Guerra das Malvinas, em 1982, de tanto pedir para o então chefe, Armando Nogueira. Não se conformava com o fato de que só seus colegas homens eram escalados para situações de conflito. Reportou também a invasão da embaixada no Peru por um grupo de terroristas, os Jogos Olímpicos de Atlanta e a Copa do Mundo na França em 1998.

Entrevistou celebridades como Michael Jackson, Mick Jagger, Madonna, Elton John, Freddie Mercury, Julio Iglesias, Roberto Carlos, Leonado DiCaprio, Harrison Ford e Nicole Kidman, além de ter viajado com Paulo Coelho pela ferrovia transiberiana até Moscou.

Nascida em Vila Isabel, na zona norte do Rio de Janeiro, Glória Maria Matta da Silva era filha do alfaiate Cosme Braga da Silva e da dona de casa Edna Alves Matta. Ela se formou em jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e entrou na TV Globo como estagiária de rádio-escuta, alguém que ficava garimpando informações dadas por outras emissoras de rádio e TV.

Em nota, a Globo lamentou a morte. "Glória marcou a sua carreira como uma das mais talentosas profissionais do jornalismo brasileiro, deixando um legado de realizações, exemplos e pioneirismos para a Globo e seus profissionais."

Num tempo em que o jornalismo cobrava envolvimento zero do repórter com seu entrevistado, Glória já tinha a exata dimensão do efeito que a TV provoca nas emoções do telespectador. Muito antes de os influenciadores digitais afetarem a linguagem e os critérios do jornalismo, ela já sabia qual era o impacto de se pôr no lugar do público.

Por isso, ao apresentar a nova Ferrari de Ronaldo Fenômeno, em reportagem para o Fantástico, não fingia que aquela era uma situação normal. Exibia, sem pudor, o deslumbramento que qualquer um teria ao entrar no carro com o notório craque para dar uma volta pelas largas avenidas da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Tampouco fazia questão de disfarçar o orgulho de ser enlaçada pelos braços de Julio Iglesias para um breve passo de dança e se gabava de contar que o cantor a mandou buscar no Rio com seu jatinho, em duas ocasiões, para que ela o entrevistasse. Nem se acanhava em mostrar comoção de atender ao pedido de Roberto Carlos por um beijo. "Isso só eu tenho", disse, ao oferecer o rosto ao Rei.

Situações como essa faziam com que Glória viralizasse muito antes que esse termo existisse. Em 2016, ela viralizou de fato, quando fumou maconha diante das câmeras, em reportagem para mostrar o ritual de fumar "a ganja" na Jamaica. "Eu não sabia o que era. O rei lá do negócio queria que eu caísse, mas não caí. Puxei duas vezes e não caí", disse no Roda Viva, em março do ano passado.

Preconceito

Fundador da Globo, Roberto Marinho tinha grande apreço por Glória Maria, que namorou seu filho caçula, José Roberto Marinho, com quem ela morou, ainda jovem. O jornalista Leonêncio Nossa relata, na biografia "Roberto Marinho - O Poder Está no Ar", o preconceito que ela enfrentou ao entrar com ele no Country Club, no Rio de Janeiro, ambiente da alta sociedade carioca.

"Papai foi tranquilo. Gostava dela, tinha admiração por ela. Mas eu senti o preconceito no Rio quando estava na companhia dela em lugares públicos", disse José Roberto ao biógrafo. "Aqui, as classes sociais são apartadas."

Em entrevista a Pedro Bial, em maio de 2020 , Glória confirmou o episódio no Country Club. "Era o clube inteiro olhando para aquela mesa. Eu não sabia o que fazer. Não sabia se era só porque eu era negra ou se era também porque ele era o filho do Roberto Marinho, mas foi um dos momentos mais desagradáveis da minha vida. Eu me sentia como um macaco no zoológico, todo mundo ali, esperando a hora de dar uma banana."

Nesta mesma entrevista a Bial, a jornalista diz que era desprezada pelo então presidente João Figueiredo, que a chamava de "negrinha". "O general Figueiredo não me suportava. Quando ele foi indicado, a gente foi fazer a famosa fala dele na Vila Militar, em que ele dizia 'para defender a democracia, eu bato, prendo e arrebento'."

Contou então que cometeu a ousadia de corrigir Figueiredo sobre um erro gramatical e ele nunca mais a perdoou por isso. "Passei todo o governo Figueiredo ouvindo ele dizer 'tira essa neguinha da Globo daqui!'."

Glória teve seus romances e casamentos, mas nunca havia sido mãe até 2009, quando resolveu adotar Laura e Maria, hoje adolescentes, ao visitar a Organização de Auxílio Fraterno em Salvador. Às duas filhas, vinha ensinando a arte de "se blindar do racismo".

"Nada blinda preto de racismo. Você tem que aprender a se blindar da dor. Mulher preta é pior ainda. Somos mais abandonadas e discriminadas, porque o homem preto não quer a mulher preta", disse ela no Roda Viva, em março do ano passado.

"Hoje nada me faz sofrer porque aprendi a me blindar e estou ensinando as minhas filhas a terem as mesmas coisas", acrescentou, contando que ambas já haviam sofrido situações de racismo.

No mesmo programa, disse que não tinha medo da morte e se recusava a viver de acordo com a opinião alheia. "Visto um biquíni 'petitico', desse tamanhinho", mostrou. "E cada vez vou diminuindo mais."

"Não me preocupo nem um pouco com como devo me vestir ou me comportar. Quem tem que estar bem comigo sou eu. A vida é minha. Ninguém paga as minhas contas, ninguém cuida dos meus problemas. Quero estar bem comigo porque vou morrer, ninguém vai morrer por mim. Quem vai me julgar hoje não vai deitar no caixão no meu lugar."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.