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Entenda como Homem-Formiga e os heróis da Marvel são seres políticos

Livro 'Todas as Aventuras da Marvel', de Douglas Wolk, examina 27 mil gibis para destrinchar o que pensam esses personagens

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São Paulo

Hank Pym, que já assumiu o manto do Homem-Formiga —agora com a sua terceira aventura cinematográfica recém-lançada—, uma vez agrediu a própria mulher, a Vespa. O personagem, que tem o dom de reduzir ou aumentar dramaticamente a própria estatura, refletia nosso maravilhamento com as façanhas tecnológicas da corrida nuclear.

No entanto, ser um dos cientistas mais geniais do mundo não o impediu de se sentir frustrado diante da carreira bem-sucedida da mulher como super-heroína em "Avengers 213", de 1963.

Pantera Negra é o rei de uma utopia tecnológica africana. Magneto é um cigano sobrevivente do Holocausto que se tornou um terrorista. Homem de Ferro, um bilionário exibicionista que tenta afogar traumas no álcool, representa o sistema industrial-militar no ápice da eficiência —e, é claro, do perigo.

Cartaz do filme 'Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania'
Cartaz do filme 'Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania' - Divulgação/Marvel Studios

Eles e outros incontáveis personagens e enredos são o objeto da radiografia feita pelo jornalista Douglas Wolk no livro "Todas as Aventuras Marvel", publicado há pouco no Brasil pela editora Conrad.

"Se você quiser entender como é a relação dos Estados Unidos com o complexo industrial-militar nos últimos 60 anos, leia os quadrinhos do Homem de Ferro", diz. "Ele não luta contra o crime. Muitos dos quadrinhos de super-heróis contornaram a sanha vigilante porque isso é algo que, no mundo real, ficou bem feio."

A ironia, entretanto, é que esses personagens encontraram lugar no imaginário popular justamente também por terem um pé na nossa realidade.

Ele lembra que falamos, afinal, da editora que lançou o Capitão América —em 1941, quando ela ainda se chamava Timely Comics— socando na cara o grande vilão da época, Adolf Hitler. Os quadrinhos sempre refletiram a época em que foram lançados e, em especial, as pessoas que os fazem, afirma Wolk. Muitos dos artistas pioneiros dos gibis de super-heróis desde os anos 1930 são judeus de esquerda, por exemplo.

Wolk fala com conhecimento de causa. Fã há mais de 40 anos, ele leu 27 mil revistinhas para escrever o livro —que venceu o Eisner, um dos principais prêmios do ramo, de melhor publicação sobre quadrinhos.

Capa do livro 'Todas as Aventuras Marvel'
Capa do livro 'Todas as Aventuras Marvel' - Divulgação/Conrad

"Stan Lee sempre foi um humanista meio piegas que pregava a convivência pacífica. Essa era a marca dele", conta. O próprio Lee veio de uma família de judeus imigrantes da Romênia, além de ter servido na Segunda Guerra redigindo manuais, desenhando cartuns e fazendo filmes educativos para o departamento de comunicação do Exército americano.

Durante a Guerra do Vietnã, quando Lee já era uma figura central na Marvel e a editora assim já era chamada, a 57ª edição do quadrinho "Sub-Mariner" situou uma história de Namor em meio a um protesto de universitários contrários ao conflito. Numa cena, uma estudante bate boca com uma mulher mais velha, xingando de "porcos" os policiais que agridem os manifestantes no campus.

Por outro lado, Steve Ditko, criador do Doutor Estranho e coautor do Homem-Aranha com Lee, era um devoto de Ayn Rand, a idealizadora do objetivismo. No 38º número de "Amazing Spider-Man", de 1966, Peter Parker é abordado agressivamente por colegas que o chamam para participar da marcha em curso. O personagem recusa, dizendo que não tem motivos para se juntar ao grupo. Peter é chamado de "reacionário" por um deles.

O autor Douglas Wolk
O jornalista americano Douglas Wolk - Divulgação/Lisa Gidley

Os X-Men, que completam seis décadas em setembro deste ano, talvez sejam um dos casos mais emblemáticos da Marvel no que se refere a temas políticos. No livro, Wolk rechaça uma antiga interpretação sobre os mutantes —a de que o telepata Charles Xavier é um equivalente a Martin Luther King e Magneto, a Malcolm X.

Segundo o jornalista, não é bem por aí. Os personagens têm ideias diferentes das defendidas por essas duas figuras do movimento dos direitos civis.

"A discriminação que os mutantes sofrem é genérica e específica", ele afirma. "Pode se referir à sexualidade? Sim, claro, mas não por inteiro." O mesmo se aplica às questões de raça, pessoas com deficiência e desigualdade econômica, ele acrescenta. Os mutantes são odiados de qualquer ângulo, o que torna possível o leitor ver a si mesmo nesses personagens independente de qualquer identidade. Aí está a grande sacada.

Os leitores LGBTQIA+ dos X-Men encontraram um espelho nesses personagens marginalizados. Quando Chris Claremont assumiu o título no fim da década de 1970, ele o revitalizou ao apostar nos temas de ódio e alienação, além de dar profundidade às personagens femininas, como Tempestade, a feiticeira do tempo, e a médium Jean Grey.

Claremont também criou outras personagens importantes, como Kitty Pride, que pode tornar o próprio corpo intangível, e Mística, a mutante de pele azul que pode se transformar em qualquer um —não importa gênero ou raça.

Um dos trabalhos mais importantes de Claremont para os mutantes é "Deus Ama, O Homem Mata". O enredo de 1982 traz um reverendo cristão fundamentalista e ex-militar planejando um genocídio mutante. O teor sombrio da obra reflete também o amadurecimento dos próprios leitores da Marvel, segundo Wolk.

Se no início se entendia que gibis de super-herói são coisa de criança, durante a Guerra do Vietnã, por exemplo, o escritório da Marvel passou a ser inundado por cartas de universitários de uma nova esquerda. Stan Lee sabia notar a direção em que os ventos políticos sopravam e chegou a comparecer a encontros para conversar com os universitários sobre os gibis.

Frank Miller, quando à frente das histórias do Demolidor nos anos 1980, sugeriu várias vezes que o vigilante e a assassina Elektra consumavam o amor deles na cama. Na aclamada passagem de Jonathan Hickman pelas tramas dos X-Men, o roteirista resolveu de maneira bastante contemporânea o antigo triângulo amoroso de Wolverine, Jean Grey e Ciclope fazendo deles um "trisal".

Mas calma lá. A Marvel, lembra Wolk, é uma empresa. Hoje é uma megacorporação da Disney, dominando a indústria do pop deste século com filmes e séries, e antes disso já licenciava suas marcas para serem usadas em lancheiras, cadernos e tudo quanto é tipo de produto.

O apelo deles nunca termina porque a história também não. O universo Marvel é o maior já construído, defende o autor. As intersecções dessa teia imensa e viva foram assim feitas para os leitores acompanharem o desenrolar das histórias comprando mais de um título nas bancas. "Toda semana eu leio os X-Men", conta. "Nada pode me afastar deles."

TODAS AS AVENTURAS MARVEL

  • Preço R$ 99 (416 págs.); R$ 69,90 (ebook)
  • Autoria Douglas Wolk
  • Editora Conrad
  • Tradução André Gordirro
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