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Como o estilo de cria, vindo da favela, conquista o mundo da moda e veste até Anitta

Camisetas de time, óculos Juliet e conjuntos da Bad Boy viram tendência a partir de releituras de estilistas periféricos

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Modelos Camilan e Leonardo Sant Anna, posam para foto com roupa do estilista carioca da Vila Kennedy, Abacaxi, na região da Pedra do Sal, na zona portuária do Rio de Janeiro Eduardo Anizelli/ Folhapress

Martina Colafemina
São Paulo

"Calça da Gang toda mulher quer/ Uns R$ 200 para deixar a bunda em pé." A proposta entoada nos anos 1990 pela Furacão 2000 no hit "Calça da Gang" voltou a ser um desejo de muitas mulheres. É que a roupa de cria, como é chamado quem nasce na periferia, está ganhando os pilares da cultura pop para vestir figuras como Anitta.

Foi com um shortinho e um top da Bad Boy, por exemplo, que a cantora comemorou seu aniversário de 29 anos. A peça ultracurta, estampada com um par de olhos e sobrancelhas arqueadas, foi criada como uma sunga para lutadores de MMA. Com um corte que evidenciava o bumbum, no entanto, não demorou para que a peça viralizasse nos bailes funks do Rio de Janeiro e fizesse sucesso nas bancas de camelôs.

Modelos Camilan e Leonardo Sant Anna posam com roupas do estilista Jean Martins, o Abacaxi, carioca da Vila Kennedy, na região da Pedra do Sal, zona portuária do Rio de Janeiro - Folhapress

As peças usadas pela cantora são releituras criadas por Jean Martins, estilista de 23 anos conhecido como Abacaxi. Ele diz se inspirar em sua vivência na Vila Kennedy, favela da zona oeste do Rio de Janeiro às margens da avenida Brasil, para reviver o simbolismo dos bailes com referências que vão do afrofuturismo ao País das Maravilhas de Alice, passando ainda por marcas incontornáveis do imaginário suburbano carioca como a Guaravita.

Anitta não é a única a resgatar o estilo que viveu na adolescência. Gloria Groove, nascida em Vila Formosa, bairro da zona leste de São Paulo, fez o mesmo ao criar a identidade visual de "Lady Le ste", seu último álbum de estúdio. Ficou a cargo da stylist Bianca Jahara traduzir as referências da adolescência da cantora para os croquis.

Um dos principais looks é uma camiseta, inspirada por um uniforme de futebol, com listras pretas e vermelhas, em que se lê Lady Leste em letras que imitam uma pichação. Um biquíni com um shortinho que deixa a calcinha à mostra, um meião e um par de saltos transparentes compõem o restante do figurino, reproduzido à exaustão pelos fãs da drag queen em seus shows.

Tasha & Tracie vêm na mesma esteira. Elas trazem em seus looks detalhes que são vistos nos bailes de São Paulo, os chamados fluxos. São os tênis esportivos de 12 molas, calças, bermudas, saias e vestidos aveludados da Cyclone e camisetas da Oakley.

As peças com símbolos da Ferrari, da Lacoste e da Tommy Hilfiger também estão entre os preferidos dos crias. São marcas de grife que, quando chegam à favela, ganham outro sentido.

O diretor criativo e modelo Abayomi de Oliveira, stylist de Tasha & Tracie e Matuê, usa referências desta estética mais ligada ao esporte para criar suas peças e editoriais de moda. É uma inspiração que vem da infância. Sem acesso fácil à internet, ele assistia a clipes de rap na televisão e se interessava pelo jeito que cada grupo se vestia.

Ao conhecer Abacaxi pelas redes sociais, a conexão foi imediata. "Somos negros no meio da moda, que é totalmente branco. Somos de comunidade, somos filhos de mães solteiras, não somos estudados. Todos esses fatos nos deixam bem ligados", diz Abay, como é conhecido.

A parceria entre os dois rendeu uma coleção ambientada em Heliópolis, favela de São Paulo que abriga um dos bailes mais famosos da capital, o Helipa. Em um campo de futebol de terra batida com a comunidade ao fundo, as modelos posam com tops, biquínis e triquinis do Real Madrid, do Barcelona, do Manchester City e do Arsenal.

Outras dançam em cima de caixas de som segurando copos de whisky e sobem em uma moto BMW com Nike Shox nos pés, óculos enormes e espelhados no rosto e pulseiras, anéis e correntes de ouro com pingentes nas mãos e no pescoço.

Com isso, Abay passou uma temporada na Itália e emplacou editoriais de moda no Brasil e na Europa. Suas criações estamparam uma capa da revista portuguesa Lux Woman e da Glamour brasileira. "A estética foi bem aceita pelo público europeu e se tornou até referência para outros estilistas, que introduziram a camiseta de time nos desfiles", diz.

Seu primeiro desfile aconteceu nas gravações do clipe de "Mantém", de Matuê e WIU. No vídeo, os rappers interagem com uma passarela montada por Abay no prédio da Bienal de São Paulo.

A alta do estilo de cria acontece no momento que o funk ascende como o segundo gênero musical mais popular do país entre jovens entre 15 e 29 anos, segundo pesquisa do Datafolha, e o mais ouvido do país no exterior.

Professora de antropologia da PUC-RJ, Mylene Mizrahi estudou em seu mestrado a calça Gang, aquela da música da Furacão 2000, que conferia conforto ao mesmo tempo em que evidenciava as nádegas. As peças originais, feitas de moletom ou jeans strech, eram usadas por celebridades como Jennifer Lopez, Paris Hilton e Gisele Bündchen. Já as réplicas, vendidas por camelôs, eram usadas pelas meninas nos bailes.

Uma calça dessas, assim como as camisetas de grifes, eram objetos de desejos dos crias, o que, mais tarde, influenciou a criação do funk ostentação, em São Paulo. "A ostentação já existia no Rio para além das roupas. Eram o ouro e as armas. Ali se mostra poder aquisitivo e que se pode ter tudo o que as classes abastadas têm, mas do jeito deles", diz Mizrahi, que escreveu os livros "Figurino Funk: Roupa, Corpo e Dança em um Baile Carioca" e "A Estética Funk Carioca: Criação e Conectividade em Mr. Catra".

Num movimento circular, o estilo de cria tanto desce da favela para o asfalto quanto entra na periferia pela televisão e por outras mídias. As roupas esportivas, o Nike Shox, os óculos Juliet, as camisetas de time e os cordões de ouro não nascem na comunidade, mas passam a representar um movimento estético e a ganhar significado a partir do momento em que são usados pela periferia. "É sobre o corpo que está usando", diz Mizrahi.

Modelos com roupas do estilista Jean Martins, o Abacaxi, carioca da Vila Kennedy - Folhapress

Prova disso é a minissaia plissada Darlene, batizada em homenagem à personagem de Deborah Secco na novela "Celebridade", exibida entre 2003 e 2004. Mais tarde, veio ainda Suelen, personagem de Isis Valverde em "Avenida Brasil", e Valeska, vivida por Juliane Alves em "Babilônia", com calças de cintura baixa, coloridas e metalizadas, além de jeans justíssimos. "Volta e meia, a mídia aposta nos estereótipos. Mas apostam porque eles ressoam para o público", diz a professora.

Abacaxi e Abay dizem estranhar ver suas criações em quem não é da periferia. "Há pouco tempo, nossa moda não era vista com bons olhos. Foi preciso passar por vários processos difíceis para convencer a galera de usar. Quando vejo pessoas de classe alta usando, fico assustado, mas fico feliz, porque eles estão divulgando meu trabalho e mostrando um outro lado que ninguém vê", diz Abacaxi.

"Se estão usando, significa que estamos sendo vistos. Somos referência. Com naturalidade, acho legal. Tem o lado de apropriação, óbvio. Alguns artistas não têm a menor missão, mas precisam estar no hype. Ao meu ver, passam vergonha. Mas quem sou eu para ditar moda?", acrescenta Abay.

A visão dos estilistas é amparada pela da antropóloga. Ela afirma que o baile funk sempre foi um espaço em que todos os corpos têm vez. "Nos shows da Gaiola das Popozudas, subiam no palco a Valeska, um corpo tipicamente preferencial, toda sarada, duas outras dançarinas mais magras e uma anã", diz, frisando que não havia distinção entre que roupa supostamente seria melhor para cada biotipo.

Modelos Camilan e Leonardo Sant Anna posam com roupas do estilista Jean Martins, o Abacaxi, carioca da Vila Kennedy, na região da Pedra do Sal, zona portuária do Rio de Janeiro - Folhapress

A diversidade de corpos é o primeiro ato do espetáculo que Abacaxi produz em seus desfiles. É possível ver uma modelo de pernas torneadas, pele negra brilhante e abdômen esculpido vestindo uma microssaia com as cores do Brasil seguida de outra, plus size e de seios fartos, nos mesmos trajes. O próximo modelo pode ser um homem usando um dos shortinhos, que antes só eram vistos em corpos femininos.

O problema, para estes estilistas, é outro. Depois que sua criação apareceu no corpo de Anitta, a Bad Boy impediu que Abacaxi continuasse vendendo esta peça, mesmo que ela seja encontrada facilmente em sites como a Shoppe. Sua loja, na internet, está fechada temporariamente.

"Isso gera uma frustração. Quando a gente é preto, da periferia e trabalha sozinho para conquistar espaço, a gente fica cansado de sempre ficar tentando, batendo na porta e a porta nunca abrir", diz.

Vestir pessoas famosas não mudou o propósito de Abacaxi. Ele diz que não vai não aumentar os preços, que giram em torno de R$ 50 a R$ 100 por peça, porque quer que seu produto seja acessível para os moradores da periferia. É a mesma preocupação de Jahara, a stylist de Glória Groove.

Isso, no entanto, não impede Abacaxi de sonhar alto. Ele quer que suas peças, desfiladas com irreverência nas ruas da capital carioca, da periferia à porta do Copacabana Palace durante o Baile da Vogue, conquistem o mundo todo. Mas sem perder a essência, diz. "Em qualquer lugar que você vá, sabem de onde você veio. É shortinho, é top, é chinelinho Havaianas. É favela."

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