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Novo disco de João Gilberto traz revisão minimalista da MPB

'Relicário: João Gilberto' reúne 36 músicas, entre elas 'Rei Sem Coroa' e 'Violão Amigo', que aparecem pela primeira vez em um álbum

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Rio de Janeiro

Em 10 de junho de 2019, no aniversário de João Gilberto, a cantora Bebel decidiu presentear o pai com algo imprevisível. Há alguns meses, como detentora de sua curatela, ela avaliava a proposta de um novo disco de João. Com alguma pressa, a primogênita pediu um link ao Sesc São Paulo para que ele pudesse ouvir, na íntegra, a gravação ao vivo de seu show de 1998, no então recém-inaugurado Sesc Vila Mariana. De olhos fechados, com o fone, ele não ouviu uma só vez, mas repetidas vezes, em silêncio. Ao fim, disse à filha ter gostado do som.

O disco "Relicário: João Gilberto (Ao Vivo no Sesc 1998)", com 36 faixas, lançado agora pelo Selo Sesc, reúne os últimos fonogramas ouvidos e elogiados por João, um artista idiossincrático no julgamento de mixagens de suas gravações, sem excluir as consagradas, em obediência a uma musicalidade interior blindada dos ruídos do mundo.

João Gilberto em show de 1998 no Sesc Vila Mariana
João Gilberto em show de 1998 no Sesc Vila Mariana - Divulgação

Depois de sua morte, em 2019, aos 88 anos, o Sesc precisou reiniciar o diálogo com Bebel Gilberto e os outros dois herdeiros, João Marcelo e Luísa Carolina, antes de fechar um acordo sobre os direitos autorais. Os irmãos suspenderam as zangas mútuas para liberar o acesso a 118 minutos e 24 segundos de belezas acesas. A limpidez das gravações traz esperança aos que desejam ver a obra de João ser relançada com seu nível de autoexigência.

O Sesc erra em apresentar "Rei Sem Coroa", de Herivelto Martins e Waldemar Ressurreição, como a única inédita em sua discografia incorporada ao novo álbum. "Violão Amigo", de Bide e Marçal, aparece em gravações jogadas na internet sob o rótulo "Ao Vivo - São Paulo 1997", em um período próximo às apresentações no Sesc. No entanto, esses registros (um deles filmado) não integram nenhum disco oficial de João, cuidadoso na liberação de fonogramas.

"Amoroso: Uma biografia de João Gilberto", de Zuza Homem de Mello, lista todas as músicas gravadas e lançadas até setembro de 2021, dentro e fora do Brasil, e também não inclui "Violão Amigo". Com tratamento técnico adequado, "Relicário" entrega não só uma, mas duas novas joias.

O samba "Rei Sem Coroa", creditado aos dois músicos, foi composto por Waldemar Ressurreição e apresentado a Herivelto, criador do Trio de Ouro, numa noite organizada por Synval Silva, no Rio. O livro "Herivelto Martins: uma escola de samba" (1992), de Jonas Vieira e Natalício Norberto, mostra que Herivelto se animou com o tema da música de Ressurreição e compôs o sucesso carnavalesco "Que Rei Sou Eu". Em 1945, ele entregou os dois sambas para o cantor Francisco Alves e avisou que os créditos seriam divididos no selo do disco. Ressurreição fez cara feia, mas aceitou.

"Relicário" reafirma o protagonismo atribuído por João Gilberto a Herivelto, também presente com "Izaura" e "Ave Maria no Morro". O sambista gravado por Dalva de Oliveira, Carmen Miranda, Francisco Alves e Orlando Silva compõe o quadro de sua representação poética do país, em que os compositores da bossa nova (Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra ou Roberto Menescal) espelham uma tradição viva e mutante.

O novo álbum evidencia a revisão crítica minimalista da música brasileira desenhada por João Gilberto desde o LP "Chega de Saudade", de 1959. Na órbita pessoal de sua arte, sem entrevistas ou ensaios, com um personalidade diferente de seus discípulos tropicalistas, ele relê e altera a ordem da tradição, explora zonas inexploradas de standards e revela o oculto em canções de aparência banal.

O procedimento de reescrita faz com que um disco de João com as canções de sempre não resulte em um disco de sempre de João. Um ouvinte novidadeiro pode evitar um álbum que reúna uma vez mais, como "Relicário" reúne, as músicas "Chega de Saudade", "Curare", "Doralice", "Saudade da Bahia", "Rosa Morena", "Aos Pés da Cruz", "Corcovado", "Meditação", "Wave" ou "O Pato", mas João logo impõe a complexidade de mudanças nucleares do canto e das harmonias. Para ele, nos cortes de versos, a emenda é tão importante quanto o soneto.

De tempos em tempos, João acrescentava novas velhas canções ao seu repertório essencial, em uma obra em progresso exposta com coragem nos shows. Em sua batida de violão, o passado da música brasileira perde a pátina e se torna contemporâneo sem o sê-lo, pois lidamos com um artista que nos leva à suspensão do tempo. É possível reconhecer que, nos anos 1990, ele lapidava e devolvia ao mundo as canções "Violão Amigo", "Rei Sem Coroa" e "Nova Ilusão" (José Menezes e Luiz Bittencourt), assim como, na última turnê, em 2008, surpreendeu a todos com "Treze de Ouro", de Herilvelto e Marino Pinto, e "Chove Lá Fora", de Tito Madi, deixada de lado depois de dar uma violada na cabeça do autor, em 1961.

O aspecto lúdico não deve ser esquecido. João brinca. Os espectadores cantam em "Chega de Saudade" e "Eu Sei Que Vou Te Amar". Ele diz que adora o coral e até queria ouvir mais a plateia, mas fica com vergonha de pedir. O prazer de tocar violão quebra a seriedade que pode ser reconhecida em sua invenção da modernidade.

"E como ficou chato ser moderno./ Agora serei eterno", proclamou Carlos Drummond de Andrade, seu poeta favorito, em "Fazendeiro do Ar". João Gilberto desestabiliza a equação de seu mestre. Nele, não há mais moderno ou eterno. A música excede a si mesma em apenas ser.

Relicário: João Gilberto (Ao Vivo no Sesc 1998)

Bebel Gilberto e Guilherme Monteiro - Show em Homenagem a João Gilberto

Rei Sem Coroa - Show em Homenagem a João Gilberto

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