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Peça 'Ovos Não Têm Janela' ecoa Beckett em montagem no Festival de Curitiba

Peça de Manoel Carlos Karam dirigida por Beto Bruel retrata espera eterna por médico com sucessão de episódios nonsense

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Curitiba

Beto Bruel, de 73 anos, está com as bochechas coradas. Iluminador mais respeitado do país, cinco vezes vencedor do prêmio Shell de teatro, ele, que já trabalhou com mais de cem encenadores, agora fica todo sem graça ao lembrar de sua iminente estreia na direção.

"O que é que eu fui fazer, compadre?", diz Bruel, rindo. "Em 50 anos de carreira, nunca pensei em dirigir, acho que é a primeira vez e a última, tudo sou eu, estou acostumado com a iluminação." No Festival de Curitiba, ele monta a peça "Ovos Não Têm Janelas", texto inédito de Manoel Carlos Karam, escritor e dramaturgo catarinense, morto em 2007.

Cenas da peça 'Ovos Não Têm Janela', em cartaz no Festival de Curitiba - Daniel Sorrentino

Karam e Bruel se aproximaram ainda nos anos 1970, no Teatro Margem, companhia paranaense fundada há 50 anos. "Ovos Não Têm Janela", última peça escrita por Karam, se insere na comédia do absurdo, bem ao modo dos clássicos do irlandês Samuel Beckett e do romeno Eugène Ionesco.

Pouco antes do ensaio da peça começar, Bruel prefere ficar do lado de fora do auditório do Museu Oscar Niemeyer, no centro de Curitiba. Lá dentro, Lucas Amado e Anry Aider se apressam para afinar a luz. "Tem que respeitar o trabalho deles, né, compadre?", afirma o agora diretor, repetindo o vocativo que se tornou seu bordão.

Loquaz, Bruel tem a fala apressada e sempre cai no mesmo assunto: a luz. Na sua visão, os holofotes demarcam as cenas, que ele mesmo inventou. Do mesmo modo, "Ovos Não Têm Janela" é também uma torrente verbal, um palavrório que no palco se amalgama, formando, assim, um redemoinho de ideias e ideais.

Dois homens —Sidy Correa e Gabriel Gorosito— se encontram com duas mulheres— Guenia Lemos e Renata Bruel, filha de Beto— na antessala de um médico. O único interlocutor do grupo é um recepcionista meio mal-humorado, vivido pelo ator Moa Leal. À pergunta, "e o doutor?", o recepcionista sempre responde "o doutor não demora".

Durante toda a peça, o grupo espera pelo doutor, como quem aguarda a chegada milagrosa de um messias. A frase "o doutor não demora" corresponde ao vazio da expressão "um dia ele chegará", de "Esperando Godot", texto escrito por Beckett em 1953.

Para preenchê-lo, o grupo despeja no palco vazio uma torrente de frases curtas, emulando a linguagem apocopada do mundo das redes sociais. Não à toa, logo no início todos os atores usam seus celulares, tentando matar o tempo na sala de espera. "Quando passamos na rua, o que ouvimos é exatamente o que está neste texto da peça", afirma Bruel.

"Ovos Não Têm Janela" é uma festa estranha com gente esquisita. Nada tem sentido "a priori". A peça retrata uma sucessão de episódios sem nexo, e do nonsense, nasce a comicidade do texto. Os atores narram uma corrida de cavalo, debatem se os polos do planeta são achatados ou redondos —num prenúncio das teorias dos terraplanistas— e sugerem fundar uma igreja para aumentar a grana.

É uma trama com a assinatura de Karam, diz Bruel. Nos anos 1970, o autor escreveu e dirigiu 20 peças de teatro. Na década seguinte, passou para a escrita de livros de ficção. No Teatro Margem, o dramaturgo se notabilizou pelo experimentalismo e a resistência à repressão, imposta pela ditadura.

Entre os seus trabalhos mais importantes, figuram "Comendo Bolacha Maria No Dia de São Nunca", uma reunião de minicontos publicada em 1999, e "Godot É uma Árvore", compêndio de fábulas e anedotas, lançado há oito anos.

A mesma árvore, agora em papelão, está montada no centro do palco. O cenário, assinado por Guenia Lemos e Ana Kummer, ainda tem uma dezena de telefones coloridos que caem do teto.

Já a trilha sonora, concebida por Bruno Karam, o filho do autor da peça, aposta num piano dodecafônico para emular a aleatoriedade do texto teatral.

"É tentador se meter na iluminação da peça, mas seria uma sacanagem", afirma Bruel. "Teatro é democracia, e aqui acho que consegui exercitar a democracia."

O jornalista viajou a convite do festival

Ovos Não Tem Janela

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