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'O Lodo' opõe a cruz e a vagina para mergulhar em mundo de pesadelos

Filme de Helvécio Ratton tem elenco bem dirigido e lembra o quanto a fé pode ser um desconforto na vida das pessoas

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O Lodo

  • Quando Estreia nesta quinta (13) nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Eduardo Moreira, Renato Parara, Inês Peixoto
  • Produção Brasil, 2020
  • Direção Helvécio Ratton

Nunca faltou sinceridade a Helvécio Ratton. Um pouco de malícia, talvez. Professar sempre um claro catolicismo progressista levou seu cinema um tanto conservador a se escudar com frequência em boas causas.

Para não ir longe, sua defesa —honesta— dos religiosos acusados de dedurar Carlos Marighella à polícia esbarrava em cenas de tortura inteiramente despropositadas, tanto pelo que mostravam —óbvio e hiperbólico— como pela ineficácia.

Paulo André, Samira Ávila, Marcos Falcão e Ricardo Batista em cena do filme 'O Lodo', de Helvécio Ratton
Os atores Paulo André, Samira Ávila, Marcos Falcão e Ricardo Batista em cena do filme 'O Lodo', de Helvécio Ratton - Lauro Escorel/Divulgação

Mas isso parece ter despertado Ratton para outro lado das coisas —ao cineasta não basta a boa-fé. É preciso pôr a sua pele em jogo. Eis o que ele faz desta vez, enfrentar os próprios fantasmas e invadir francamente o domínio do terror. A própria trama o demonstra.

De cara, temos um desanimado Manfredo, vivido por Eduardo Moreira, enfrentando as várias questões de sua vida, a ambição profissional —solapada pelo próprio desânimo, digamos—, a concorrência do colega oportunista por uma promoção, o incômodo caso amoroso com a mulher do patrão, o próprio patrão, sadicamente vago em suas intenções.

Mas o pior é o desânimo, que o leva a um psiquiatra, o doutor Pink. E este, para começar, diz que Manfredo precisa lembrar a primeira coisa que vem à mente quando pensa na infância. E a lembrança está lá —um corredor vazio, com um crucifixo ao fundo.

A câmera avança até mostrar uma bela mulher seminua diante do espelho. A mãe, naturalmente. Assustado, Manfredo tenta se livrar de Pink.

É aí, no entanto, que começa sua jornada de pavor, já que Pink não se mostra nada disposto a largar o pé do cliente. A situação logicamente presta seu tributo a Kafka, mas também a Edgar Allan Poepara não falar de Freud, já que no teto do consultório de Pink o que Manfredo vê é a imagem estilizada de uma vagina, a matriz.

E para não falar, claro, de Murilo Rubião, elegante mestre do conto fantástico, em quem o roteiro se inspira.

Essa jornada tétrica se fará acompanhar de terrores mais imediatos, pessoas que invadem a vida de Manfredo sem serem chamadas —inclusive um inquietante adolescente—, um farmacêutico com suas injeções, pesadelos que parecem invadir a realidade —um inconsciente tributo a Wes Craven e seu Freddy Krueger, talvez?—, feridas que marcam seu corpo assim como seu espírito.

Essa espiral de dores serve para nos lembrar de o quanto a fé —católica, em princípio— pode ser um desconforto na vida das pessoas, bem mais do que um conforto. Mas, sobretudo, serve a Ratton para mergulhar no mundo de terrores em que se opõem essas duas imagens, a cruz e a vagina, a salvação e o pecado.

Se é quase impossível não notar a feliz escolha de atores e tipos do elenco —bem dirigidos, no mais—, é um pouco surpreendente, embora não incômodo, que a luz tenha mantido um tom linearmente realista, quando vários momentos do filme parecem sugerir uma fotografia mais próxima do expressionismo, e que um sugestivo quadro colocado dentro do quarto de Manfredo —nada menos do que dentro do quadro— tenha ficado sempre tão em segundo plano.

A ousadia de Ratton não está, em todo caso, no estilo; antes na maneira incisiva como nos conduz a um mundo de terror tão terrivelmente próximo de nós. Ou, será melhor dizer, tão dentro de nós, como o lodo que atormenta Manfredo.

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