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Olga Tokarczuk defende a literatura como ponte para a alteridade radical

Antologia 'Escrever É Muito Perigoso' revela pensamento da Nobel polonesa para quem tudo é parte da natureza

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Fabiane Secches

Psicanalista, crítica literária e pesquisadora de literatura na USP

Escrever é Muito Perigoso — Ensaios e Conferências

  • Preço R$ 82,90 (264 págs.); R$ 64,90
  • Autoria Olga Tokarczuk
  • Editora Todavia
  • Tradução Gabriel Borowski

No texto que abre o livro "Escrever É Muito Perigoso — Ensaios e Conferências", da escritora polonesa Olga Tokarczuk, a autora começa fazendo um contraste entre duas imagens que teriam sentidos opostos.

A primeira, menos conhecida, foi publicada em 1888 pelo astrônomo francês Camille Flammarion, e é descrita por Tokarczuk da seguinte maneira: "Ela retrata um viajante que chegou ao fim do mundo e, esticando a cabeça para além da esfera terrestre, fica admirado com a visão de um cosmos ordenado e bastante harmonioso".

Ilustração da capa de 'Escrever é Muito Perigoso — Ensaios e Conferências', livro de Olga Tokarczuk
Ilustração da capa de 'Escrever é Muito Perigoso — Ensaios e Conferências', livro de Olga Tokarczuk - Divulgação

Em seguida, Tokarczuk conta que, desde a infância, tem sido um enorme prazer para ela contemplar essa imagem "maravilhosamente metafórica", que em tudo se diferenciaria do célebre desenho "Homem Vitruviano", de Leonardo da Vinci, "estático e triunfalista, enquanto uma medida do universo e de si mesmo".

O contraponto entre essas duas perspectivas, a antropocêntrica de Da Vinci e a visão de Flammarion, que elogiaria a "perplexidade com harmonia e a grandeza do mundo extravisível", representa um longo conflito, apoiado sobre uma dicotomia artificial que separa seres humanos e natureza, conflito que reaparece em diferentes obras de Tokarczuk, como em "Sobre os Ossos dos Mortos", "Correntes" e "A Alma Perdida".

Em sintonia com o que defende o escritor e pensador indígena Ailton Krenak, para a autora, tudo é natureza. As pessoas não são a medida das coisas, e nem de si mesmas, mas apenas parte de uma engrenagem maior e mais complexa, que nos abarca.

A escritora, formada em psicologia, também parece ressoar o que afirmou Sigmund Freud: o "eu" não seria sequer "senhor de sua própria casa" —grosso modo, Freud se referia à ideia de que não governamos nem a nós mesmos, mas, antes, somos também governados por partes de nós que desconhecemos.

Para Tokarczuk, a relação dos seres humanos com tudo que não o é, com tudo o que é alteridade, inclusive com nossas facetas desconhecidas, ou, por que não dizer, com nossa animalidade recalcada, parece ser um território infinitamente mais rico e interessante do que o discurso antropocêntrico que trata as pessoas como o início e o fim de todas as coisas.

A escritora Olga Tokarczuk
A escritora Olga Tokarczuk - Lukasz Giza/Divulgação

Mas, ao defender certa insignificância da humanidade perante tudo o que existe para além, Tokarczuk não a considera menos digna do encanto que também dirige para o que nos extrapola. Ao contrário, se somos parte, estamos incluídos. E o que é específico da humanidade também merece sua atenção. Em especial, é claro, a literatura.

Nessa antologia, que reúne ao todo 12 textos, incluindo a linda conferência concedida na ocasião em que foi laureada com o prêmio Nobel de Literatura, intitulada "O Narrador Sensível", Tokarczuk ressalta que apenas os seres humanos, entre todas as espécies, teriam adquirido "a misteriosa capacidade de ler, ou seja, abandonar a realidade que lhe foi dada, embora só mental e temporariamente. A cada vez que abrimos um livro, entre o olho e a superfície de papel acontece um milagre."

"Vemos sequências de letras, mas quando as percorremos com a visão, nosso cérebro as transforma em imagens, pensamentos, cheiros, vozes. Antes, é uma questão de paisagens, aromas e sons que esses signos são capazes de emanar", continua ela.

Como argumenta em relação à gravura de Flammarion, também podemos entender essa afirmação de forma metafórica: a experiência de leitura e a de escrita não se restringem a experiências possíveis de se captar com os olhos ou com as mãos. Que as imagens que formamos, quer seja a partir da leitura de palavras, quer seja a partir da observação e da interpretação de ilustrações, abrem novos mundos e possibilidades de enxergar o nosso.

Que a literatura, que Tokarczuk chama de ferramenta milagrosa, tem o potencial de nos transportar para além de quem somos e de nos conectar verdadeiramente com outras pessoas, com outras espécies e com toda sorte de coisas, inclusive as que ainda não foram nomeadas. A literatura é uma das raras criações humanas que constrói pontes para a alteridade em sua forma mais radical.

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