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Livros maternidade

'Frio o Bastante para Nevar' estuda por que mãe e filha se apartam

Em romance breve, Jessica Au persegue com vitalidade pensamentos sobre como é complexo se conectar aos outros

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Taís Cardoso

Cientista social e curadora, é mestre em história, teoria e crítica de arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Frio o Bastante para Nevar

  • Preço R$ 64,90 (96 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Jessica Au
  • Editora Fósforo
  • Tradução Fabiane Secches

Em "News from Home", Chantal Akerman capta com sua câmera imagens da Nova York dos anos 1970 e as sobrepõe às cartas recebidas da mãe, que lê em off.

Enquanto observamos arranha-céus, o trânsito do metrô pichado e as inúmeras pessoas anônimas passando, ouvimos os pensamentos da mãe, em francês, reclamando sobre sua saúde ("achei que era menopausa, mas era só cansaço"), comentando que terminou o inverno e começou o verão, manifestando a saudade que sente. A filha tenta habitar um novo lugar, realizar algo mais ambicioso, mas as amenidades do cotidiano da mãe a puxam como um ímã, e Akerman retém essa conjunção em seu filme.

É também desse descolamento entre mãe e filha, e especialmente dessa relação entre conhecer e lembrar, que Jessica Au parte em "Frio o Bastante para Nevar".

mulher de feições asiáticas vestindo camiseta em preto e branco
A escritora australiana Jessica Au, autora de 'Frio o Bastante para Nevar' - Nicholas Purcell/Divulgação

O romance, primeiro vencedor do Novel Prize, prêmio literário coorganizado pelas prestigiosas editoras New Directions, Fitzcarraldo e Giramondo, conta a história de uma viagem de alguns dias pelo Japão realizada por uma jovem australiana e sua mãe, nascida em Hong Kong.

A filha, que é também a narradora do livro, escolhe o Japão por ela própria já ter estado lá antes e por pensar que a mãe "poderia ficar mais à vontade explorando uma outra parte da Ásia". "E talvez eu sentisse que isso, de algum modo, nos colocaria em pé de igualdade, sendo as duas estrangeiras."

Mas ao desejo de estar em pé de igualdade se contrapõe à vontade de atribuir sentido a concretude daquilo que vê. Assim, em meio a conversas e narrativas episódicas fluidas que se misturam às lembranças da personagem e não deixam conclusões óbvias ao leitor, mãe e filha percorrem museus, restaurantes, livrarias, santuários. Tudo vai sendo descrito, e sentido, minuciosamente.

A escolha por viajarem no outono, quando "quase tudo já se foi", os cheiros de vapor, do chá e da chuva que cai suave e persistente do lado de fora, somados aos cenários amadeirados e úmidos do Japão e a seus quebra-luzes leitosos, ancoram uma atmosfera ao mesmo tempo soturna e graciosa, compondo uma sensação enevoada, de contornos maleáveis.

Essa maleabilidade se funde à diluição das expectativas da filha, já que o entusiasmo da mãe com a viagem é menor e mais confuso que o dela.

Ao perceber a mãe um pouco perdida, se assumindo cansada, não consegue compreender se ela está ou não se divertindo. E se, num primeiro momento, seu impulso é de comentar com euforia algo que viu, isso vai sendo dissolvido em explicações gentis.

Por um lado, ela reconhece o desconforto de se sentir pressionada a ter uma opinião sobre as coisas, pois já sentiu isso no início da faculdade de literatura inglesa e está ciente de que só adquiriu essas habilidades porque estudou com afinco. Por outro, percebe a artificialidade que envolve todo seu repertório crítico e sabe que não é isso que importa.

Enquanto isso, a mãe se orienta por princípios holísticos de bondade e doação, afirmando que "nunca pensou em si mesma de forma isolada" e que "não havia controle, e a compreensão não diminuiria nenhuma dor". São valores que provavelmente foram importantes para prover o sustento que pagou a educação das filhas, mas com os quais a jovem é incapaz de dialogar.

Em seu breve romance, Au persegue com vitalidade pensamentos que ressaltam como é complexo cuidar dos outros, se conectar, acomodar sentimentos sem necessariamente se conformar. Não se trata de resolver as situações, não há um desfecho claro.

A neve não cai em "Frio o Bastante para Nevar". Mas os detalhes, mesmo os mais banais, quando se sabe ver, são o substrato daquilo que nutre a vida de sentido.

Como no trecho em que sentimos a mãe, mesmo depois de ter visitado casas com mais de 200 anos que a fizeram lembrar da própria infância, sendo genuinamente feliz ao entrar numa loja de luvas e meias, dessas que se encontra em qualquer parte do mundo, onde pode comprar presentes para toda a família, incluindo a filha que a acompanha.

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