Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Chantal Akerman dá adeus a Bogart e 'Cidadão Kane' na lista dos melhores filmes

Com três horas e meia, 'Jeanne Dielman' é capaz de tornar qualquer longa iraniano uma espécie de 'Indiana Jones'

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Desde que eu era criança, a lista dos melhores filmes de todos os tempos não mudava nunca. "Cidadão Kane", de Orson Welles, estava sempre em primeiro lugar, e não haveria quem o tirasse de lá. Era como a rainha da Inglaterra, o papa, o Pelé: eterno, sem rivais.

A primeira surpresa veio em 2012, quando a revista Sight and Sound pôs "Um Corpo que Cai", de Alfred Hitchcock, no lugar de "Kane".

Mas como! Para ficar nos clichês da época, um "mestre do suspense" não poderia nunca sobrepujar um "gênio da sétima arte" como Orson Welles.

A ilustração mostra uma mulher loira, sentada ao centro, da cintura para cima, descascando batatas. ela tem um semblante triste. Ao fundo, uma cozinha com ladrilhos amarelos, um fogão e uma pia. Ela veste uma camisa florida e uma jaqueta azul por cima.
Ilustração publicada nesta terça-feira, 20 de dezembro de 2022 - André Stefanini

Achei estranho. Mas nada se compara ao que acontece neste ano de 2022. O melhor filme de todos os tempos, segundo a pesquisa da revista, feita com mais de mil críticos, não é de Welles, nem de Hitchcock. Eu estaria preparado para Coppola ou Scorsese, fazer o quê. Talvez Tarantino, até Spielberg; a vida é assim mesmo.

E simpatizo muitíssimo com a escolha feita por Ruy Castro anos atrás, pondo "Casablanca" à frente de "Kane". É um filme mais completo, mais político, mais romântico, mais satisfatório, mais memorável. Para a dimensão cultural do cinema, ainda que não para a dimensão estética do cinema, Bogart —Chaplin, claro— são maiores do que Kane.

Mas Chantal Akerman? Com certa luta, consegui ver "Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles", filme de 1975 que agora é o melhor de todos.

O contraste com "Kane" não poderia ser maior. O mistério, a acrobacia, a variedade temática da obra-prima de Welles dá lugar a uma câmera parada, indiferente, cadavérica.

Com três horas e meia de duração, "Jeanne Dielman" é de uma austeridade exasperante, capaz de tornar qualquer filme iraniano uma espécie de "Indiana Jones". Saímos do esplendor barroco para entrar na miséria calvinista.

É uma tomada de posição estético-moral, sem dúvida. Mas, nessa linha, por que não escolher "Shoah", de Claude Lanzmann? Ficou em 27º lugar. A resposta, naturalmente, é que "Shoah" não trata da questão feminina, único e importante assunto do filme de Chantal Akerman.

Trata-se de um manifesto, ou um "estudo", se quisermos; como cinema, baseia-se numa única ideia, no máximo duas.

Vemos a rotina de uma mulher em Bruxelas, por alguns dias. Ela acorda, faz o café, descasca batatas, engraxa os sapatos do filho, arruma a cama, tudo isso em tempo real. É possível aprender a fazer bolo de carne e bife à milanesa. Ela não é de muita conversa, e o filho adolescente, menos ainda. Tomam sopa em silêncio. Você fica assistindo.

No final da tarde, antes que o filho chegue, Jeanne recebe o cliente do dia, para render-lhe serviços sexuais. É uma ajuda no orçamento, que não parece contentar nenhuma das partes envolvidas.

A importância narrativa está nos detalhes. No primeiro dia, tudo transcorre normalmente. No segundo dia, a engrenagem começa a dar sinais de pane: a protagonista deixa cair um talher no chão, as batatas cozinham demais, ela se penteia de menos.

O recado é claro, e certíssimo. A vida da dona de casa é uma condenação, uma sequência de trabalhos forçados sem esperança de reconhecimento nem fim. Claro que o caráter macambúzio da mãe e do filho e da mãe agravam bastante esse quadro.

O realismo do filme é tamanho, que vira caricatura —aquele estilo de caricatura perfeitíssima, bastante comum hoje em dia, onde o desenho é até mais parecido do que o original.

Como esbravejar diante da escolha dos críticos? Ficaria parecendo que estou esbravejando contra o feminismo. Não tenho nada contra; mas cinema é outra coisa.

O bom das listas, em todo caso, é que há outros 99 filmes para ver também. Entre os 20 primeiros, há sete a que não assisti. Quanto aos outros 80, nem contei. Até 2032, acho que terei bastante tempo para isso.

Demitido aos 90 anos de idade, Janio de Freitas sempre será um modelo de inteligência, conhecimento jornalístico e integridade pessoal. Era um dos poucos remanescentes daquele período em que a Folha, com seus altos e baixos, representava um avanço na vida política e intelectual do país. Num processo longo e implacável, a Folha foi se alienando do que era e do que significava para seus leitores. Envelheceu. Janio, não. Tive orgulho de estar ao lado dele durante tantos anos.

Sou grato pelo espaço que me foi concedido na Ilustrada, e pelo apoio de leitores e colegas. Com esta coluna, encerro minha colaboração com o jornal.

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