Descrição de chapéu

Ligeti, nascido há cem anos, foi reverenciado pelo cinema de Kubrick

Compositor líder da vanguarda da música pós Segunda Guerra precisou brigar pelos direitos autorais da trilha de '2001'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

A cena, presente no filme "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968), de Stanley Kubrick (1928-1999), dura quase quatro minutos. Levados a investigar na Lua a descoberta de um monolito –aparentemente não construído por mãos humanas– os astronautas se aproximam lentamente do objeto. Nada é dito, mas a tensão aumenta de forma assustadora a cada passo.

A condução narrativo-dramática é realizada pela música, o "Kyrie" do "Requiem" de György Ligeti (1923-2006), compositor cujo centenário de nascimento será celebrado em 28 de maio.

Cena do filme '2001: Uma Odisséia no Espaço', de Stanley Kubrick
Cena do filme '2001: Uma Odisséia no Espaço', de Stanley Kubrick - Divulgação

Se o texto é extraído da milenar missa latina oferecida aos mortos, o tratamento vocal, entretanto, é de vanguarda. Escrita em 1963-1965, a missa fúnebre de Ligeti conta com vozes solistas, coro e orquestra.

Cada uma das quatro vozes do coro tradicional é subdividida (o que os músicos chamam "divisi"), criando uma estranha dialética entre movimento e estaticidade, uma "micropolifonia", como se costuma nomear. Cada voz faz movimentos orgânicos, mas a somatória é altamente dissonante e tensa.

A proposta sonora de Ligeti não é impactante, mas repleta de gradações. Nada é súbito, o movimento é permanente e contínuo. Ligeti usa as conquistas da música eletrônica para fazer música acústica, e antecipa o espectralismo francês dos anos 1970.

Kubrick também utiliza em seu filme trechos de outras obras de Ligeti, como "Atmosphères" (1961), para orquestra, "Lux Aeterna" (1966), obra vocal a capella (sem nenhum instrumento) para 16 cantores solistas, e "Aventures" (1962-1963), para três cantores e sete instrumentistas. Nenhuma delas foi escrita especialmente para o filme.

De origem húngaro-judaica, quase toda a família de Ligeti (o que inclui o pai, o irmão, a tia e o tio) foi executada em campos de concentração como Auschwitz e similares. Sua cidade natal situa-se na região da Transilvânia e hoje faz parte do território romeno.

Apesar de ter vivenciado de perto alguns dos maiores horrores do século 20, Ligeti escreve uma música que o crítico Alex Ross chama, com propriedade, de "luminosa e perspicaz". Ele começa seguindo os passos de seus antecessores, Béla Bartók (1881-1945) e Zoltan Kodály (1882-1967), que foi seu professor na Academia Franz Liszt de Budapeste.

Mas a via dupla que alternava a pesquisa sobre música popular tradicional de sua região com a experimentação contemporânea logo esbarrou na censura e repressão da Hungria comunista. Colocando a vida em risco, consegue enfim atravessar a fronteira para o ocidente, fixando-se em Viena.

Encontra então amparo nos compositores que lideravam a vanguarda musical do pós Segunda Guerra Mundial, cujos centenários irão se suceder nos próximos anos: Ligeti é dois anos mais velho que o francês Pierre Boulez e o italiano Luciano Berio (nascidos em 1925), e cinco anos mais velho que o alemão Karlheinz Stockhausen (de 1928) com quem chegou a trabalhar por algum tempo.

Avesso a quaisquer dogmatismos ou a pressupostos composicionais apriorísticos, não demoraria, entretanto, a romper com os colegas de geração. Em suas palavras: "Precisamos encontrar um caminho que não retroceda nem permaneça na vanguarda. Estou numa prisão: um muro é a vanguarda, o outro é o passado, e eu quero fugir".

Embora o uso de suas obras por Kubrick tenha sido feito sem autorização (ele apenas recebeu os direitos após batalha judicial), o compositor gostou bastante do resultado. É fato que Stockhausen aparece na capa do álbum "Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band" (1967) dos Beatles, mas a exposição que a obra de Ligeti teve por conta de sua utilização cinematográfica não é comparável a nenhuma outra dos artistas da chamada Escola de Darmstadt —em referência à cidade alemã cujos festivais de verão tornaram-se ponto de encontro dos músicos de vanguarda nos anos 1950-1960.

Composições de Ligeti viriam a integrar igualmente filmes futuros de Kubrick. Sua obra prima orquestral "Lontano" (1967) aparece em "O Iluminado" (1980), e é inesquecível o toque solitário do piano de sua "Música Ricercata" (1951-53) no último longa do diretor, "De Olhos Bem Fechados" (1999), estrelado por Tom Cruise e Nicole Kidman.

Nessa obra de juventude Ligeti escreve o primeiro movimento utilizando praticamente uma única nota "lá", que ocupa todas as funções compositivas, e a cada movimento ele adiciona uma nota a mais, até ter a gama escalar completa na peça final.

Ele voltaria ao piano solo em seu período final, produzindo três elogiados volumes de "Estudos" para o instrumento, o último dos quais publicado em 2001. Estreada em 1978, "Le Grand Macabre", sua única ópera, mostra estilo eclético, repleto de alusões sonoras.

Entre 1973 e 1989 Ligeti ensinou na Hamburg Hochschule für Musik und Theater, além de ter sido professor visitante na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos. Ele está sepultado no Cemitério Central de Viena —não muito longe de Beethoven e Brahms— onde uma placa horizontal translúcida traz apenas o seu nome.

Como parte das celebrações do centenário, a Osesp inseriu em sua temporada "Lux Aeterna", em julho, e "Quarteto de cordas n.2", em agosto, entre outras obras, além de ter realizado, em março, uma espetacular performance do "Concerto para violino" com solo de Augustin Hadelich.

Ao escapar primeiro dos trabalhos forçados nazistas e depois das tropas soviéticas, ainda sem saber acerca do destino trágico de sua família, o compositor descobriu, após longa caminhada, que havia estrangeiros morando em sua casa.

Não deixa de ser curioso ter sido a música deste compositor, precisamente —presente no mais cultuado filme de ficção científica jamais feito— o elo enigmático capaz de romper as fronteiras espaciais na busca por compreensão e sentido.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.