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Eliane Marques elabora a herança negra em seu primeiro romance

'Louças de Família' é obra cuidadosa que relata os desafios sociais e subjetivos da vida negra na diáspora

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Stephanie Borges

Louças de Família

  • Preço R$ 64,90 (280 págs.); R$ 45,90 (ebook)
  • Autoria Eliane Marques
  • Editora Autêntica Contemporânea

Uma lista de contas a pagar, objetos que decoram a casa. O que fica da vida de uma mulher negra que só teve a oportunidade de se sustentar fazendo trabalho doméstico?

Louças de família, primeiro romance da poeta Eliane Marques, parte da tentativa de compreender como se define o valor de uma vida para além de números, posses e heranças. Se o legado dos descendentes é a memória, contar as histórias de gerações de uma família negra pode ser uma forma de tentar apaziguar vivos e mortos.

Capa do livro 'Louças de Família', de Eliane Marques
Capa do livro 'Louças de Família', de Eliane Marques - Divulgação

Tia Eluma detestava louças lascadas, exerceu o cargo de equede num terreiro de candomblé durante anos, depois se converteu à igreja dos "comensais do reino de Deus". Após sua morte, sua sobrinha Cuandu, a narradora do romance, organiza seus pertences e tenta saldar suas dívidas.

Longe de ser uma saga convencional, o romance segue um fluxo não linear no qual Cuandu descreve personagens mortas muito antes de seu nascimento.

Ela conta itans —histórias dos orixás cultuados pelo candomblé nagô— como parte de seus relatos familiares, evocando uma ancestralidade mítica. Na diáspora, famílias negras não se limitam a relações consanguíneas. A necessidade de sobrevivência, as religiões e as afinidades criam inúmeros tipos laços.

A linguagem é um dos destaques do trabalho de Marques, que também é tradutora e psicanalista. A voz de Cuandu se destaca logo nas primeiras páginas pelo sotaque que incorpora palavras em espanhol e em iorubá. No entanto, a aproximação da oralidade não é mero recurso de estilo, deixando claro como algumas palavras e expressões são insuficientes para que ela se expresse.

Em "Entre Orfe(x)u e Exunouveau", Edimilson de Almeida Pereira observa que "a linguagem herdada dos articuladores da violência não é capaz de despir-se de seus atributos para falar criticamente da realidade de injustiça que ajudou a consolidar".

O uso de neologismos no romance não é só para conferir um modo de falar peculiar à narradora. Ao usar expressões como "pessoas enegrecidas", a autora faz uma escolha alinhada ao pensamento de autores como Fred Moten, que argumenta que a negritude não é uma característica inerente, mas uma condição imposta por meio de violências por sociedades embranquecidas que criaram o conceito de raça para estabelecer hierarquias.

Marques faz acenos à literatura e à teoria de autoria negra ao longo do romance. Algumas alusões são contextualizadas em notas, mas versos de Audre Lorde e a expressão "dívida impagável", título de um ensaio de Denise Ferreira da Silva, surgem com naturalidade.

Embora Cuandu fale pouco de si, percebe-se que ela buscou referências intelectuais que lhe ajudaram a forjar seu vocabulário, pois as ferramentas do senhor não vão derrubar a casa grande.

"Louças de Família" é um trabalho cuidadoso que explora possibilidades de narrar uma história que articule os desafios sociais e subjetivos da vida negra da diáspora sob o ponto de vista de uma mulher negra que não deseja romantizar sua suposta força.

Cuandu vê beleza em suas ancestrais, mas não no sofrimento que elas suportaram para dar melhores condições de vida aos seus descendentes. Ela reconhece seus traumas, mas não se resume a eles.

Cuandu afirma que sua vida é definida pela recusa. Ela fez o que pôde para não servir aos brancos. Não quis se casar nem ter filhos. Se a vida de suas avós, suas tias e sua mãe apontavam um caminho, rejeitá-lo é ser errante. A narradora comenta seus erros na escrita, ironiza escolhas de palavras, se desculpa. Contar as histórias da família pode ser uma estratégia de recordar o rumo a ser evitado.

"Louças de Família" se destaca entre a produção atual da literatura contemporânea por seu trabalho primoroso com a linguagem e por apresentar uma narradora enegrecida tão comprometida com sua humanidade e complexidade que nos estimula a pensar sobre nossos segredos e louças lascadas que talvez ainda guardemos no fundo de um armário, sem serventia.

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