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Candomblé só aparecia nas páginas policiais do jornal, lembra babalorixá

Para Pai Rodney, imprensa melhorou, mas ainda desliza ao abordar religiões de matriz africana

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São Paulo

Como parte dos projetos especiais dos 100 anos da Folha, o jornal convidou 13 integrantes de grupos sub-representados no jornalismo profissional praticado no Brasil. Eles expõem episódios de preconceito e desinformação, além de problemas na relação com jornalistas e na forma como a imprensa noticia —ou não noticia— questões que os afetam direta ou indiretamente.

Batizada de “E Eu? - O Jornalismo Precisa me Ouvir”, a série é formada por vídeos e depoimentos em forma de texto.

Pai Rodney William no auditório da Folha, com seus sobrinhos e filhos de santo Kauã Odara e Manuela Araújo
Pai Rodney William no auditório da Folha, com seus sobrinhos e filhos de santo Kauã Odara e Manuela Araújo - Bruno Santos/Folhapress

Babalorixá e doutor em antropologia pela PUC-SP, Pai Rodney William, 46 anos, fala sobre a representação dos praticantes de religiões de matriz africana na imprensa. Pai Rodney é autor dos livros “Apropriação Cultural”, “A Bênção Aos Mais Velhos” e “Palavras de Axé: Fé, Esperança e Coragem”. Leia entrevista ou assista ao vídeo (há uma versão com recursos de acessibilidade logo abaixo). ​

VERSÃO COM RECURSOS DE ACESSIBILIDADE

Sempre fui muito combativo. Para mim, candomblé sempre foi luta —pode ser governo progressista, conservador, pode ser ditadura militar, ditadura Vargas. O candomblé sempre foi perseguido. A gente teve um respiro, claro. Os governos Lula e Dilma deram um fôlego e uma esperança, que obviamente foram totalmente extirpados com o governo Bolsonaro.

Não gosto de definir candomblé como uma religião. Não que o conceito de religião esteja ultrapassado, mas ele não dá conta do que é o candomblé. É uma forma que eu tenho de ver e viver o mundo, de explicar tudo o que acontece. Ele é a minha vida.

Isso também se expressa no modo de vida que ocupo, o de babalorixá, que é um pai dentro de uma comunidade. Significa não só que sou uma liderança, mas que tenho um papel fundamental na vida de algumas pessoas.

O candomblé é uma forma que eu tenho de ver e viver o mundo, de explicar o que acontece. É a minha vida

Pai Rodney William

Babalorixá

Um dos legados do candomblé é reproduzir as famílias africanas que foram esfaceladas com a escravidão. Ela é muito confundida com outras religiões de matrizes africanas —batuque, quimbanda, umbanda, xangô e outras que ficaram conhecidas com a alcunha de macumba. Então sou macumbeiro, e com muito orgulho. Ser macumbeiro significa assumir uma identidade a partir da qual eu luto para que todos os elementos da minha cultura possam ser respeitados.

Pai Rodney com um Exu de madeira
Pai Rodney com um Exu de madeira - Bruno Santos/Folhapress

Foi um desafio frequentar uma universidade católica como uma pessoa de candomblé. Às vezes eu ia com as minhas insígnias e minhas roupas brancas, criava naquele ambiente algum contraste. Não só faço questão que a minha presença seja notada, mas que minha religiosidade também esteja no universo acadêmico. Quando você diz que é sacerdote, a sua suposta neutralidade e objetividade científica caem por terra, e isso vira motivo para ter sua bolsa negada.

A Folha surgiu no ano de maior perseguição na história da República às religiões de matriz africana. Nos anos 1920, tinha uma política de Estado de branqueamento, o que significava perseguir a cultura negra e os terreiros de candomblé.

Os anos 1920 e 1930 foram terríveis para as religiões de matrizes africanas e para a população negra. Como a imprensa se colocou? A imprensa foi conivente? Ela foi justa, foi parcial? É papel da imprensa ser imparcial? A quem a Folha de S.Paulo serviu ao longo desses anos? Ela tem sido antirracista? Tem promovido a vida ou a morte de pessoas negras?

Violência simbólica gera violência real. Vemos isso com o governo implementando uma agenda teocrática e neopentecostal, que sempre demonizou as religiões de matrizes africanas. Com isso, eles estão dizendo quem pode ser morto e quem merece viver.

Então, como um jornal atua na sua prática cotidiana de comunicar as políticas de morte e a promoção da igualdade e da justiça numa sociedade extremamente racista? Qual é o papel de um jornal numa sociedade como a nossa?

O candomblé era trazido para o jornal nas páginas policiais, era caso de polícia. Para se tocar candomblé na Bahia até o final dos anos 1970, você precisava de autorização da delegacia de jogos e costumes —e havia uma imprensa que adjetivava, de maneira muito negativa, qualquer matéria sobre candomblé. Hoje se tem um pouco mais de cuidado, mas ainda assim há um deslize aqui e ali.

Quando você vê um Bonde de Jesus, um Complexo de Israel e outras facções no Rio de Janeiro que estão impedindo pessoas das religiões de matrizes africanas de praticarem sua crença, me diga se é justo que a imprensa se manifeste de maneira neutra. Muitos adeptos dessas religiões cristãs admitem um traficante evangélico, mas não que eu tenha o simples direito de exercer a minha fé nos orixás.

Apropriação cultural é uma violência. É apagar a origem, distorcer e esvaziar de significado para tornar algo mais palatável. Esse lugar de origem tem que ser respeitado. Se há troca, não é apropriação. Agora, se você vem para trocar comigo e não deixa nada, você está me roubando.

Não tem a ver com o que o branco pode ou não usar. É um fenômeno estrutural, algo muito mais amplo que promove genocídio, que promove a morte de culturas. Não tem a ver com o branco não poder cantar samba, mas com o movimento que depura o samba porque acha ele muito primitivo e barulhento. Basta ver quem ganhou rios de dinheiro e quem morreu pobre na favela.

Rodney William

Babalorixá e doutor em antropologia, é autor de “Apropriação Cultural”, “A Bênção aos Mais Velhos” e “Palavras de Axé: Fé, Esperança e Coragem”

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