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Artes Cênicas Zé Celso

'A Queda do Céu' de Zé Celso poderia ser uma das melhores obras do Oficina

Texto incompleto que recebeu sua primeira leitura dramática transforma o depoimento de Davi Kopenawa em teatro

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São Paulo

É difícil mensurar o que seria "A Queda do Céu", adaptação idealizada por José Celso Martinez Corrêa para o livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, se o diretor e dramaturgo não tivesse saído de cena aos 86 anos, vítima de um incêndio em seu apartamento em São Paulo, sem ter finalizado o trabalho.

José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, do Teatro Oficina - Karime Xavier/Folhapress

A julgar, contudo, pela leitura realizada, na noite de quarta-feira (12), na Praça das Artes do Sesc Avenida Paulista, o espetáculo provavelmente entraria para o grupo seleto de grandes produções da história recente do grupo Oficina Uzyna Uzona.

Isso porque Zé Celso não apenas pensava em trabalhar com um elenco majoritariamente formado por artistas indígenas, mas também parecia propor uma quebra narrativa em relação ao livro.

Artista formado pelos ideais pós-modernistas de Oswald de Andrade, capaz de assimilar as influências antropofágicas de uma linguagem brasileira própria, Zé Celso também surfou na linguagem clássica a partir das obras de nomes como William Shakespeare e Nelson Rodrigues.

Tudo isso ressoa nos dois capítulos apresentados como excertos de "A Queda do Céu", lidos durante a programação do Festival TePI: Teatro e os Povos Indígenas. A seleção levou em conta o que havia de mais avançado no trabalho de adaptação no qual o dramaturgo estava debruçado no último dia de sua vida.

A primeira parte, intitulada "Imagens de Forasteiros", abriu a noite e deu a falsa impressão de que o espetáculo ainda era uma obra embrionária, sem o completo entendimento dramatúrgico do que seria o todo. Zé Celso escolheu dar ação ao depoimento de Kopenawa que, de forma descritiva, percorre todo o livro.

Ao longo da leitura, a impressão foi se dissipando, mas só atingiu um ponto mais interessante na segunda parte, intitulada "A Morte do Xamã" —uma espécie de homenagem que o autor sequer imaginou que prestaria a si mesmo. O excerto elevou a leitura e inseriu certa doçura à dramaturgia, até então trabalhando com elementos críticos.

Zé Celso mergulha em críticas ao garimpo ilegal, ao genocídio do povo yanomami e ao governo Bolsonaro, representado dramaturgicamente como o "ser do caos", mas encontrou espaço ainda para inserir a delicadeza dos cantos indígenas e das celebrações à vida e aos espíritos da floresta.

Era como se a leitura de "A Queda do Céu", agendada antes mesmo da tragédia que vitimou o diretor, fosse uma continuação do velório festivo realizado no Oficina para marcar a despedida do artista.

Os cantos e as rezas protagonizadas pelo elenco formado por Macsuara Kadiweu, Lilly Baniwa, Sandra Nanayna e Casé Tupinambá se uniram a gritos e sussurros de "viva Zé Celso", num movimento que deu continuidade à eterna pesquisa do diretor de jamais separar o teatro dos atos mais cotidianos da vida.

Tanto assim que a obra foi gestada para ser encenada no sonhado Parque Teatro do Rio Bixiga, projeto acalentado pelo idealizador do Oficina há mais de duas décadas e apresentado como uma solução para a disputa entre o Oficina e o Grupo Silvio Santos que se arrasta também por décadas.

Se a proposta se concretizar, Zé Celso terá conseguido, mesmo depois de sua morte, a continuidade de sua versão do que é a arte teatral ideal para se conectar com todas as classes.

É verdade que o potencial dramatúrgico de "A Queda do Céu", o livro, se concentra no depoimento do xamã Kopenawa, o que, nas mãos de um dramaturgo comum, geraria quando muito um bom monólogo, tão dissertativo quanto o livro.

Nas mãos do pajé do Oficina, a obra pode até perder seu caráter de fácil assimilação pelo público de uma forma geral, mas ainda manterá viva a linguagem estabelecida por um diretor que nunca se acostumou a nivelar por baixo a compreensão deste mesmo público.

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