Eu e Zé Celso nos conhecemos em 1981, quando era o antigo Teatro Oficina. Eu e [o poeta e videoartista] Walter Silveira fomos chamados para fazer os letreiros do filme "O Rei da Vela".
Ficamos dois anos no Oficina, pintamos o teatro inteiro num evento chamado festa de letras com o nome de todos os atores e pessoas envolvidas nas fases anteriores do Oficina. Zé Celso chamava de Oficina Sistina, em referência à capela, pelo tipo de pintura que a gente fez lá.
A partir desse evento, eu estava saindo da ECA, a Escola de Comunicação e Artes da USP. Foi mudança de jogo total na minha vida, influenciado pelo Zé. Ele era pobre para cacete, dormia num colchão de espuma, em uma vida árdua e sem dinheiro.
Mas ele era como um farol no universo, e o quintal dele era o universo. Não tinha limite. Tudo era possível. Isso foi muito deslumbrante e muito transformador para mim e para Walter Silveira. Ele continuou sendo um farol na minha vida durante 40 anos.
Dirigi quatro peças no Oficina —"Hamlet", "Bacantes", "Cacilda" e "Boca de Ouro", registradas de maneira gigante, com oito câmeras e filmagens em dois dias, isso já no começo dos anos 2000.
Daí teve meu documentário lançado em 2011. Acho que é o único sobre Zé —e junto com ele. Foi feito de maneira muito peculiar. A premissa era levá-lo para lugares seminais de sua trajetória —o próprio Oficina, a Grécia, buscando o teatro grego, os sertões, porque ele e Euclides [da Cunha] tiveram uma relação muito forte, a praia onde o bispo foi comido pelos índios, que é o lugar onde a antropofagia começou, segundo Oswald de Andrade, e o apartamento dele no Paraíso, em São Paulo, que pegou fogo.
O filme levou dois anos para ser feito, e foi codirigido por Elaine César. Chama "Evoé, o Retrato de um Antropófago". O documentário está disponível de graça no YouTube.
Zé nunca me perguntou nada, durante os dois anos, sobre o documentário. Nunca disse tire isso, ponha aquilo, não esqueça. No dia em que o documentário estava pronto, chamei ele em casa e fizemos uma exibição. O filme termina e tem um silêncio. Daí pergunto "Zé, e aí?". "Estou espantado com a minha coerência, e como estou velho, hein?", ele respondeu.
Zé é meu pai espiritual. O que sempre me espantava era essa coisa de não fazer concessão e não ter medo do tamanho da empreitada. Mas tinha batalhas perdidas também.
"Só fiz o que quis, e isso me custou muito", dizia o Zé. Ele era um artista pleno, a vida e a obra dele eram uma coisa só. Ele dizia para os atores que não tem personagem. Você é você o tempo inteiro. Não existe divisão entre vida profissional e vida pessoal. Vida e obra, tudo tem que estar junto.
O teatro de Zé era muito vigoroso, muito poroso. Misturava a tradição do teatro com cenas da vida do contemporâneo. Em "Cacilda" ou "Os Sertões", fosse Bolsonaro ou fosse Lula eleito, o novo presidente entrava na peça na semana seguinte.
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