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Romance de Nobel turco sobre Erdogan vale para Brasil de Bolsonaro

'A Mulher Ruiva', de Orhan Pamuk, é alegoria para autoritarismo a partir de mitos orientais e ocidentais sobre pais e filhos

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Alex Castro

A Mulher Ruiva

  • Preço R$ 74,90 (280 págs.); ebook R$ 39,90
  • Autoria Orhan Pamuk
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Luciano Vieira Machado

O turco Orhan Pamuk, vencedor do Nobel de Literatura de 2006, está de volta às livrarias brasileiras com um romance sobre a paternidade. Conhecido por obras mais longas e intrincadas como "Meu Nome É Vermelho" e "Neve", em "A Mulher Ruiva" ele oferece a seus potenciais novos leitores uma porta de entrada mais amigável, ainda assim brilhante e que dialoga com a situação política atual do Brasil.

A Turquia, depois de conquistar Constantinopla em 1453 e ser inimigo existencial do Ocidente por séculos, chegou à Primeira Guerra como o "homem doente da Europa". Ao fim do conflito e perdido o império, um líder forte e carismático adotou o nome de Ataturk, ou seja, "pai dos turcos", e lançou o país em um experimento político, religioso e social inédito —ser uma república muçulmana e secular, moderna e democrática. Até hoje, seus "filhos" ainda vivem na Turquia inventada por ele.

Orhan Pamuk, autor turco vencedor do Nobel de Literatura
Orhan Pamuk, autor turco vencedor do Nobel de Literatura - Divulgação

A questão é por quanto tempo. Recep Tayyip Erdogan acabou de vencer sua terceira eleição presidencial consecutiva e tem se mostrado cada vez mais autocrático, atiçando forças religiosas conservadoras há muito tempo não vistas. Na Istambul atual, a quantidade de mulheres vestindo burcas em público era impensável 20 anos atrás.

Ataturk e Erdogan não foram lembrados à toa. Como verdadeiros pontos de fuga, tudo em "A Mulher Ruiva" aponta para essas duas figuras, paternas e polarizadoras, mesmo sem nunca as mencionar. "A necessidade de um pai existe sempre ou nós a sentimos apenas quando estamos confusos ou angustiados, quando nosso mundo está vindo abaixo?", se pergunta o narrador.

Pamuk, nascido em 1952 e educado nos Estados Unidos, é um homem cosmopolita e laico que, apesar de amar a cultura e as tradições do seu país, vê com preocupação o declínio do secularismo turco. Em vários momentos, a surpresa e o horror dos personagens da geração de Pamuk diante do conservadorismo religioso da nova geração fazem triste eco a muitas pessoas brasileiras igualmente surpresas e horrorizadas diante de Malafaia ou Damares.

A história começa em 1984, à sombra do golpe de estado de 1980, com um jovem narrador que, precisando juntar dinheiro para a universidade, vai trabalhar como aprendiz de cavador de poços. Seu pai está desaparecido —militante marxista, tinha sido preso e torturado pelos militares durante o golpe— e o menino acaba formando uma nova relação paterna com o mestre poceiro.

Trinta anos depois, o romance termina já sob Erdogan e num contexto de crescente radicalização religiosa, onde jovens conservadores interpelam pais liberais usando seu próprio discurso secular contra eles. "Se você me quer filho obediente, não posso ser um indivíduo moderno. Se me quer moderno, não posso ser obediente. A liberdade exige que se esqueçam história e ética. Já leu Nietzsche?"

Essas são as perguntas no cerne do romance. O que é ser pai? O que é ser filho? Ao longo da narrativa, são mencionadas diversas obras em que pais e filhos se matam, desde "Édipo Rei" até o épico persa "Shahnameh", onde o pai Rostam mata o filho Sohrab, passando também por muitas pinturas e ilustrações. Vale a pena buscar pelas referências iconográficas, especialmente o quadro "Ivan, O Terrível, e o seu filho "Ivan em 16 de novembro de 1581" pintado por Ilia Repin em 1885.

O narrador, por exemplo, depois de ficar obcecado pela história de Rostam e Sohrab, desiste de ter filhos e abre uma empresa. O nome da pessoa jurídica? Sohrab, o filho morto pelo pai. O que isso significa? As menções a livros e pinturas se sucedem freneticamente. São tantas armas de Tchékov penduradas na parede que não sabemos qual vai disparar. Talvez nenhuma. Talvez todas. A identidade da fugidia mulher ruiva é um de seus muitos mistérios.

Por ser um livro de muitas reviravoltas, pouco pode ser dito em uma resenha que não vá interferir na jornada que Pamuk elaborou. A graça está em pegar na mão do narrador e se deixar levar, nunca nos esquecendo –não somos todos filhos de "Dom Casmurro" à toa– de desconfiar sempre.

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