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Livros

Vilma Arêas extrapola o cult e se torna clássica com coletânea de livros

Agora reunida, obra da autora se firmou na cena editorial sem pressa, premiada e respeitada pela crítica mais antenada

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Italo Moriconi

Crítico literário, é doutor em letras e professor de literatura brasileira e comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro

Para quem ama e acompanha literatura, a reunião num único volume de toda a obra ficcional de Vilma Arêas é um grande acontecimento. Ela nos permite apreciar o valor dessa obra em novo patamar de compreensão, compartilhando espaço com outras "obras completas" e "grandes obras" que definem nossa cena literária nas últimas décadas.

Com este "Todos Juntos (1976-2023)", a posição da autora, entre seus pares e diante de seus leitores, extrapola o circuito cult e adentra o terreno do clássico contemporâneo.

vilma arêas
A escritora Vilma Arêas, em sua casa, na época do lançamento de 'Um Beijo por Mês' - Gabriel Cabral/Folhapress

É singular a trajetória da obra, assim como singular é o jeito de Vilma contar histórias. Em "Todos Juntos", organizado por Samuel Titan Jr., os contos são apresentados em ordem cronológica decrescente, iniciando-se com livro inédito, "Tigrão", de 2023, até "Partidas", o livro de estreia, de 1976.

Temos uma obra que foi marcando presença na cena editorial sem pressa, livro após livro, aproximadamente de dez em dez anos, premiada sucessivas vezes, respeitada pela crítica mais antenada. Sempre coletâneas de narrativas curtas, por vezes curtíssimas, que são a marca registrada da autora.

O percurso do mais recente ao mais antigo leva a constatar, já nos primeiros livros, as raízes de uma estética dual, presente na obra toda. De um lado, certo experimentalismo mais cético que irônico, provocador de estranhamentos, como nos contos-verbetes de "Partidas".

De outro, no segundo livro, "Aos Trancos e Relâmpagos", de 1988, o exercício da memória, a evocação da infância, a empatia, a ternura sem derramamentos sentimentais.

Passando pelo excelente "A Terceira Perna", de 1992, o domínio da forma curta na escrita de Areâs se consolida desde os anos 2000, período em que publicou três volumes excepcionais —"Trouxa Frouxa", de 2000, "Vento Sul", de 2011, e "Um Beijo por Mês", de 2018.

Entre curtas e curtíssimas, as narrativas de Arêas comportam ainda outros formatos, como as historietas "minúsculas" (em "Tigrão"), os "instantâneos" (no mesmo livro) e os microtextos que a autora chama de "cromos" (em "Trouxa Frouxa"), assim como as sequências de mininarrativas ou cenas em que um conto se fragmenta em pequenas partes, como peças num jogo de (des)armar.

Essa diversidade de formas corresponde à diversidade de situações narradas, algumas delas autobiográficas ou autoficcionais. Os temas vão e vêm, de maneira sinuosa, como que aleatória. Os enredos se encadeiam ao sabor da livre associação, evitando fixar sentidos cristalizados.

A ficção fragmentada de Vilma Arêas na verdade ancora-se num princípio crítico consistente: é inimiga dos sistemas congelados, dos dogmatismos, das ideologias, das ideias recebidas.

Há também alguns contos menos curtos, que parecem responder ao simples desejo ou à necessidade básica de contar uma história, impulsionados pela evocação de fantasmas, lembranças, afetos que insistem em permanecer vivos no espírito, funcionando como motes ou gatilhos para a elaboração narrativa, ficcional e poética.

Entre tais gatilhos destacam-se: a recorrência de lembranças terríveis da ditadura, com suas histórias vividas de tortura e exílio (este é o ponto de vista pelo qual aparece a história política na maior parte de sua obra ficcional); a atenção ao mundo infantil; o senso preciso de localização espacial, com destaque para a região de Campos e da foz do rio Paraíba do Sul; os desencontros amorosos, mais que os encontros; as cenas em que emerge a consciência aguda da iníqua situação social brasileira, curto-circuitando a própria possibilidade de narrar.

Em seus dois últimos livros, a ficção de Arêas parece buscar um ajuste de contas com o Brasil de direita que emergiu nos últimos cinco anos. Aparece a relação ambígua da narradora com Tigrão, um personagem violento do crime e da repressão, a quem, porém, ela deve favor de vida e morte. Oscila entre repúdio e gratidão, entre a ética e o afeto, um dilema bem atual.

Já o conto "A entrevista", em "Um Beijo por Mês", relata a participação da própria autora (ou de sua máscara autoficcional) numa mesa de debates sobre seu livro "Aos Trancos e Relâmpagos", ameaçado de ser visto pela plateia como imoral, através de uma leitura distorcida e doentiamente puritana das relações com crianças nele tematizadas. Sinal dos tempos.

Todos Juntos (1976-2023)

  • Preço R$ 129,90 (560 págs.); R$ 84,90 (ebook)
  • Autoria Vilma Arêas
  • Editora Fósforo
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