Descrição de chapéu
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Clássico da sociologia antirracista sai no Brasil com um século de atraso

'O Negro da Filadélfia', de W.E.B. Du Bois, foi a primeira obra sociológica a tratar a questão racial por essa ótica, em 1899

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Gabriel Rocha Gaspar

Jornalista, é mestre em literatura pela Sorbonne Nouvelle Paris 3

O Negro da Filadélfia: Um Estudo Social

  • Preço R$ 87,90 (448 págs.); R$ 61,90 (ebook)
  • Autoria W.E.B. Du Bois
  • Editora Autêntica
  • Tradução Cristina Patriota de Moura

Em pleno 2023, ter em mãos a primeira edição brasileira de "O Negro da Filadélfia" de W.E.B. Du Bois é, ao mesmo tempo, uma alegria e uma vergonha.

A alegria ficará óbvia ao longo deste texto. A vergonha é que o maior país negro fora de África está, para variar, mais de um século atrasado.

homem negro com bigode vestido de terno
O sociólogo americano William Edward Burghardt Du Bois, conhecido como W.E.B. Du Bois - Divulgação

Lançado em 1899, meros dez anos depois que abolimos tardiamente a escravidão, esta foi a primeira obra sociológica a tratar a questão racial por uma ótica antirracista. A alegação que o pai da sociologia americana ampara em profundo rigor sociológico é simples: negro é gente.

Se, ao menos em discurso, essa frase parece hoje um axioma, era um argumento radical nos Estados Unidos do século 19, onde imperavam teorias pseudocientíficas calcadas na hierarquia racial e no darwinismo social.

Era comum, mesmo em ciclos progressistas, que a pobreza fosse descrita como uma doença contagiosa. No pano de fundo estava, claro, uma teoria racista: se o pobre é uma infecção e o negro, incapaz de escapar dela, aglomerações de negros são insalubres.

Por isso, o objetivo da franja mais à direita da College Statement Association, organização da Universidade da Pensilvânia que encomendou "O Negro da Filadélfia", era basicamente determinar a duração de uma quarentena a ser imposta sobre a região onde vivia a maior parte dos pretos; isolar, com método científico, o "problema negro".

A agenda de Du Bois era outra: provar que a comunidade negra não é monolítica —tem diferentes níveis de educação, classe social, aspirações etc.— e que as condições históricas e sociais são mais determinantes da pobreza, criminalidade, precariedade e o que ele, homem de seu tempo, chama de "depravação" do que uma pré-condição racial imaginária.

Para dar contundência ao argumento junto a seu público (que ele sabia bem-intencionado, mas racista), o autor aplica como método discursivo o que depois chamaria de "dupla consciência" do povo negro.

Enquanto o branco pode ignorar a maneira como o mundo o enxerga, o negro precisa calcular as externalidades das mais banais decisões cotidianas. "Se eu sair com esse chapéu, posso ser morto pela polícia?" é uma conta diária.

Essa é também a lógica do livro. Du Bois escreve praticamente dois ensaios: o primeiro, totalmente factual (com tabelas, gráficos e estatísticas) destrói a premissa racista página após página.

O outro cria uma cumplicidade cínica com o inimigo ao empregar a linguagem misantrópica da época. Ele se refere à pequena burguesia como "melhor classe" entre os negros, descreve os "níveis de civilização" e por aí vai.

Nessa malandragem lexical, ele oculta uma heterodoxia antirracista que, à luz do dia, enterraria o estudo antes da publicação. Mas ela está ali o tempo todo, comprovando a necessidade de um enfrentamento estrutural —e não só moral— ao problema.

Não que Du Bois não fosse afeito a moralismos. Nessa primeira fase, ele acredita piamente na necessidade de "moralização" do negro. Seis décadas depois, criticaria a própria obra à luz de sua filiação ao materialismo histórico: "o que eu precisava era adicionar a minha rigorosa busca pelos fatos o claro conceito de Marx sobre a luta de classes".

Apesar disso, o livro enfrenta a anticiência de sua época com rigor e eficácia comunicacional. É pena que tenhamos esperado a terra plana capotar para ter um instrumento científico e político desse quilate em edição brasileira. E é uma edição cuidadosa, enriquecida pelas ótimas notas da tradutora Cristina Patriota de Moura.

Dois pequenos detalhes faltaram para que fosse a mais completa já publicada: os prefácios às edições anteriores, citados na introdução, mas não reproduzidos; e o relatório sobre serviço doméstico naquela região da Filadélfia, elaborado pela feminista Isabel Eaton e anexado à publicação original.

Mas são detalhes. O importante é que o segundo trabalho da carreira de Du Bois chega ao Brasil, mesmo que um século atrasado pelo desinteresse racista de nossa elite intelectual.

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