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Artes Cênicas

Empenho artístico não salva 'A Falecida' da subserviência excessiva

Em montagem com Camila Morgado, atores ficam reféns de estereótipos antigos dos personagens de Nelson Rodrigues

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A Falecida

  • Quando Qui., às 20h, sex. às 21h, sáb. às 17h e às 20h, e dom. às 18h. Até 1º de outubro
  • Onde Teatro Sesc Santo Amaro - r. Amador Bueno, 505, São Paulo
  • Preço R$ 40
  • Classificação 16 anos
  • Autoria Nelson Rodrigues
  • Elenco Camila Morgado, Thelmo Fernandes, Stela Freitas
  • Direção Sérgio Módena

Desde muito jovem, Nelson Rodrigues trabalhou como jornalista nas ruas do Rio de Janeiro. Ali ele desenvolveu um olhar de águia para diversos tipos sociais da vida cotidiana brasileira e para sua volubilidade moral.

Várias de suas peças mostram como, por aqui, a retidão pública, o moralismo religioso, a apologia aos bons costumes muitas vezes convivem com um subterrâneo de monstruosidades e depravação sexual —seja nos bairros populares, seja nos casarões de elite.

Cena de 'A Falecida', em cartaz em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Seu sofisticado controle da escrita, que capta os ritmos da sintaxe malandra brasileira e os conjuga a um tipo de elevado discurso trágico, mais a impiedade de sua crônica social, contribuíram para que Nelson Rodrigues tenha sido alçado a um dos cânones do teatro brasileiro.

Entretanto, desde os anos 1950, a reverência em excesso agiganta desmedidamente suas qualidades e obscurece os fundamentos conservadores que também definem sua obra.

Em suas peças são frequentes os estereótipos a ridicularizar gente pobre. Aproximações misóginas entre depravação sexual e uma suposta natureza animalesca da mulher, ou ainda a expectativa pedagógica e reacionária de que, como escreveu certa vez o autor, as monstruosidades mostradas em cena corrigissem e purificassem as "senhoras da vida real".

Uma das adaptações mais conhecidas de "A Falecida" é a versão cinematográfica dirigida por Leon Hirszman, em 1965, e que tem Fernanda Montenegro no papel de Zulmira. Com longos planos ressaltando a miséria e a desordem do subúrbio do Rio de Janeiro, o diretor desbravou outros sentidos para a ideia fixa de Zulmira ou para a obsessão em futebol do desempregado Tuninho.

Leon faz com que a trama evolua conectada à máquina desumanizadora da sociedade brasileira. Ao trabalhar de forma livre com o texto dramatúrgico, o diretor dilui a atmosfera conservadora, sempre a rondar o teatro de Nelson, e reativa a melhor sensibilidade cronista do autor, isto é, a conexão da trama com os ritmos selvagens da cidade e de seu tempo.

É o oposto do que acontece na montagem atual de "A Falecida", protagonizada pela atriz Camila Morgado. Mais papistas que o papa, o grupo trata o autor como um gênio intemporal, um mestre que caberia a nós apenas iluminar ou, no máximo, decifrar.

A escolha dos artistas em reverenciar certo universalismo psicológico da peça, que seria a prova da grandeza de Nelson Rodrigues, enfraquece, na verdade, aquele seu afiado andamento jornalístico, o coração a ditar os ritmos contraditórios de sua obra.

Com efeito, apesar de suas alegadas intenções progressistas, o espetáculo acaba por intensificar os contraplanos moralistas, abstratos e conservadores que também gravitam em torno das peças do autor.

Não falta empenho artístico ao grupo. O elenco é bom e consegue construir cenas dinâmicas e cômicas, mas tem sua capacidade inventiva limitada pela falta de um trabalho mais intenso de recriação da obra à luz dos dilemas da atualidade.

Há pouquíssima disposição autoral dos artistas no trato com a obra. Sem um gesto vibrante de lançar o material no vórtice do presente, isto é, reativar o interesse jornalístico e cronista pela vida concreta que nos cerca, os atores ficam reféns de estereótipos antigos na construção das personagens populares (sempre a rebaixá-los, diga-se de passagem) e de platitudes humanistas sem grandes consequências críticas.

A subserviência excessiva transforma em um monumento estático e conservador o que poderia inspirar um movimento livre de invenção artística e interesse pela vida social.

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