Desde muito jovem, Nelson Rodrigues trabalhou como jornalista nas ruas do Rio de Janeiro. Ali ele desenvolveu um olhar de águia para diversos tipos sociais da vida cotidiana brasileira e para sua volubilidade moral.
Várias de suas peças mostram como, por aqui, a retidão pública, o moralismo religioso, a apologia aos bons costumes muitas vezes convivem com um subterrâneo de monstruosidades e depravação sexual —seja nos bairros populares, seja nos casarões de elite.
Seu sofisticado controle da escrita, que capta os ritmos da sintaxe malandra brasileira e os conjuga a um tipo de elevado discurso trágico, mais a impiedade de sua crônica social, contribuíram para que Nelson Rodrigues tenha sido alçado a um dos cânones do teatro brasileiro.
Entretanto, desde os anos 1950, a reverência em excesso agiganta desmedidamente suas qualidades e obscurece os fundamentos conservadores que também definem sua obra.
Em suas peças são frequentes os estereótipos a ridicularizar gente pobre. Aproximações misóginas entre depravação sexual e uma suposta natureza animalesca da mulher, ou ainda a expectativa pedagógica e reacionária de que, como escreveu certa vez o autor, as monstruosidades mostradas em cena corrigissem e purificassem as "senhoras da vida real".
Uma das adaptações mais conhecidas de "A Falecida" é a versão cinematográfica dirigida por Leon Hirszman, em 1965, e que tem Fernanda Montenegro no papel de Zulmira. Com longos planos ressaltando a miséria e a desordem do subúrbio do Rio de Janeiro, o diretor desbravou outros sentidos para a ideia fixa de Zulmira ou para a obsessão em futebol do desempregado Tuninho.
Leon faz com que a trama evolua conectada à máquina desumanizadora da sociedade brasileira. Ao trabalhar de forma livre com o texto dramatúrgico, o diretor dilui a atmosfera conservadora, sempre a rondar o teatro de Nelson, e reativa a melhor sensibilidade cronista do autor, isto é, a conexão da trama com os ritmos selvagens da cidade e de seu tempo.
É o oposto do que acontece na montagem atual de "A Falecida", protagonizada pela atriz Camila Morgado. Mais papistas que o papa, o grupo trata o autor como um gênio intemporal, um mestre que caberia a nós apenas iluminar ou, no máximo, decifrar.
A escolha dos artistas em reverenciar certo universalismo psicológico da peça, que seria a prova da grandeza de Nelson Rodrigues, enfraquece, na verdade, aquele seu afiado andamento jornalístico, o coração a ditar os ritmos contraditórios de sua obra.
Com efeito, apesar de suas alegadas intenções progressistas, o espetáculo acaba por intensificar os contraplanos moralistas, abstratos e conservadores que também gravitam em torno das peças do autor.
Não falta empenho artístico ao grupo. O elenco é bom e consegue construir cenas dinâmicas e cômicas, mas tem sua capacidade inventiva limitada pela falta de um trabalho mais intenso de recriação da obra à luz dos dilemas da atualidade.
Há pouquíssima disposição autoral dos artistas no trato com a obra. Sem um gesto vibrante de lançar o material no vórtice do presente, isto é, reativar o interesse jornalístico e cronista pela vida concreta que nos cerca, os atores ficam reféns de estereótipos antigos na construção das personagens populares (sempre a rebaixá-los, diga-se de passagem) e de platitudes humanistas sem grandes consequências críticas.
A subserviência excessiva transforma em um monumento estático e conservador o que poderia inspirar um movimento livre de invenção artística e interesse pela vida social.
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