Descrição de chapéu
Maria da Glória de Oliveira

Misoginia prevaleceu nos círculos acadêmicos e literários no Brasil

Academia Brasileira de Letras e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estão entre as instituições marcadas por barreiras sexistas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Maria da Glória de Oliveira

Professora de teoria da história do departamento de história da Universidade Federal Rural do Rio Janeiro (UFRRJ)

Quantas historiadoras, geógrafas, filósofas, sociólogas e antropólogas nós conhecemos na escola ou na universidade? De quais mulheres cientistas, artistas e intelectuais nos recordamos rapidamente?

Se cruzarmos os marcadores de raça, classe, orientação sexual e territorialidade, a pergunta fica mais desafiadora: a quantas autoras negras, subalternas, lésbicas e periféricas tivemos acesso em nossa formação?

colagem de figuras ligadas a áfrica
Obra de Rosana Paulino, da série 'Atlântico Vermelho', de 2016, que ilustra a capa de 'Perder a Mãe', livro da americana Saidiya Hartman, editado pela Bazar do Tempo - Acervo Rosana Paulino/Divulgação

Respostas muitas vezes hesitantes e reticentes a indagações aparentemente banais como essas não sinalizam meros lapsos de esquecimento ou falta de informação. Podem ser sintoma recorrente dos mecanismos sob os quais determinados sujeitos são reconhecidos como autores ou cuja produção intelectual se tornou ou não visível, autorizada e difundida na sociedade.

E aqui um aviso prévio aos navegantes negacionistas das demandas identitárias: sob certos enquadramentos histórico-políticos, nem todos os indivíduos valem ou contam como sujeitos porque, em um jogo de distribuição desigual, alguns são mais "reconhecíveis" do que outros.

O problema, como nos alertou a filósofa Judith Butler, não se resolve tão somente com passes mágicos de visibilidade e inclusão, embora ambas sejam ações indispensáveis, mas demanda uma força-tarefa de transformação coletiva dos próprios termos e condições que regem as políticas de reconhecimento.

Há algumas décadas, deixou de ser novidade que a persistente invisibilidade da produção intelectual de autorias "outras" que não a de homens brancos, das classes dominantes, cisgêneros e heterossexuais é resultado das dinâmicas de formação dos cânones nos campos literário, artístico, historiográfico e científico.

Em todas as suas variações, processos de canonização não são aleatórios, mas efeitos de políticas de memória e esquecimento, inclusão e exclusão. Por isso, mantêm-se potencialmente abertos a disputas, revisões e contestações.

Embora não faltem iniciativas importantes de crítica aos cânones, uma consulta rápida a obras de referência geral das ciências humanas demonstra ainda o predomínio de autores brancos do sexo masculino. Quem já não se deparou com coletâneas bastante difundidas e cheias de boas intenções didáticas identificadas por títulos genéricos como "os pensadores", "grandes nomes da sociologia" ou "os historiadores"?

Compensações efetivas para as assimetrias de reconhecimento têm despontado em projetos editoriais recentes como as coleções Feminismos Plurais e Pensamento Feminista Hoje, além de um conjunto vasto e expressivo de obras dedicadas a autores e autoras não canônicos dos campos da literatura, da filosofia, da antropologia e da história.

Louváveis e necessárias, as ações de contracanonização teriam que se multiplicar em número e proporção inversa à da insidiosa cristalização de apagamentos acumulados ao longo do tempo.

Sabemos que, em contextos históricos anteriores ao século 21, é possível identificar autorias "outras" nas diferentes áreas do campo intelectual. Chama a atenção que isso seja resultado de copiosos trabalhos de memória e da árdua escavação nas margens e fendas menos visíveis dos panteões monumentais de autores canônicos.

Quando olhamos pelo retrovisor temporal, não faltam episódios emblemáticos de segregação, atravessados pelo viés de gênero. São histórias de personagens que ousaram cruzar as linhas do que Virginia Woolf, no ensaio "Três Guinéus", descreveu com a metáfora do "traçado com giz" que "um macho de voz forte e punhos cerrados decidiu infantilmente fazer no chão do mundo".

Claudia Abreu em cena do monólogo "Virginia", sobre a vida da escritora inglesa Virginia Woolf - Divulgação

Ao modo dos rituais simbólicos, tais demarcações fixam certos limites dentro dos quais os seres humanos permanecem confinados de forma rígida e arbitrária. Para alguns, mais do que para outros, tais linhas de segregação, mesmo que, por vezes, pareçam permeáveis, sempre foram excludentes.

Mulheres letradas, quando se dedicavam a modalidades de escrita como a poesia, socialmente aceitável no século 19 para quem usava saias, podiam ficar reféns de padrões misóginos de enquadramento.

Foi assim com Narcisa Amália, poetisa nascida no Rio de Janeiro, que ousou saudar os ideais libertários da Revolução Francesa no livro de poemas "Nebulosas", publicado em 1872.

A recepção favorável à autora também veio acompanhada da reprovação ao seu engajamento ideológico. Na resenha para o Correio do Brasil, Carlos Ferreira avaliava que "[...] perante a política, cantando as revoluções, endeusando as turbas", Narcisa Amália estava "simplesmente fora de lugar".

Por isso, o recomendável era que o "talento da ilustre dama" permanecesse "na esfera perfumada do sentimento e da singeleza", por ela não possuir "a virilidade necessária" para cultivar a poesia de cunho político e social.

Narcisa Amália, poetisa nascida no Rio de Janeiro no século 19 - Reprodução

Cerca de duas décadas antes, recado semelhante viria embalado ao veto à admissão de uma mulher entre os sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Na agremiação em que se forjava a memória e a escrita da história nacional, não havia espaço para representantes do sexo feminino, mesmo com méritos literários reconhecidos, como os da poetisa nascida em Ouro Preto Beatriz Francisca de Assis Brandão.

Na recusa, a comissão de sócios ilustres, formada por nomes como Joaquim Manuel de Macedo e Antônio Gonçalves Dias, alegava que o instituto não era lugar para a "respeitável patrícia", aconselhando que ela fosse recebida como "ornamento" de uma sociedade literária.

A orientação abertamente misógina e androcêntrica foi norma e prática corrente no IHGB por mais de 120 anos de sua existência. Somente em 1965, o instituto admitiu sua primeira sócia-correspondente, a historiadora portuguesa Virginia Rau e, em 1968, entre os sócios efetivos, a geógrafa Isa Adonias.

Na Academia Brasileira de Letras, rebento da Primeira República, pouco se fez para aliviar o peso da tradição sexista e patriarcal, com candidaturas femininas vetadas nos primeiros 80 anos de sua existência. A escritora Júlia Lopes de Almeida, figura central na idealização da ABL, foi deliberadamente excluída do seu quadro de fundadores.

mulher idosa branca
A escritora Júlia Lopes de Almeida em retrato sem data - Fundo Correio da Manhã/ Arquivo Nacional/Reprodução

A justificativa foi a de que a instituição seguia o modelo de sua congênere francesa, cujo regulamento restringia a candidatura aos literatos do sexo masculino. Sob tal prerrogativa incluiu-se o nome de Filinto de Almeida, hoje mais lembrado como o marido da autora de "A Falência".

Até 1951, o estatuto da Academia previa que apenas "brasileiros" com reconhecido mérito literário poderiam concorrer a uma de suas cadeiras. Foi com essa justificativa que a candidatura de Amélia Beviláqua seria rejeitada em 1930.

A barreira sexista também podia se manter simulada sob pretextos variados e pouco convincentes. Foi assim em 1911, com a recusa a uma vaga de sócia-correspondente da ABL à filóloga de origem alemã radicada em Portugal, Carolina Michaëlis, sob a alegação de que encontrava-se totalmente preenchida a "cota" de membros portugueses naquele momento.

Entre recusas, vetos e interdições, não faltaram contra-exemplos inspiradores para além do espaço traçado com giz que salvaguardava os círculos acadêmicos dominantes.

"Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados". As palavras de Maria Firmina dos Reis, em 1859, no prólogo à primeira edição de "Úrsula", romance pioneiro em língua portuguesa sobre o tema da escravidão, espelham bem tal desafio.

A escritora maranhense Maria Firmina dos Reis na pintura de Dalton de Paula - Divulgação

Se a modéstia autodeclarada da escritora maranhense pode nos causar certo estranhamento, esse estava longe de ser um traço pessoal ou exclusivo. O rebaixamento do valor literário e autoral, conhecido pela expressão latina captatio benevolentiae, foi recurso retórico mobilizado amplamente em prefácios a obras de todos os gêneros.

Não por acaso, o apelo à benevolência dos leitores talvez tenha sido indispensável para quem se atrevia a matar o "anjo do Lar", que assombrava as mulheres escritoras.

Foi assim que a baiana Ignez Sabino definiu em seus "Contos e Lapidações", de 1891: "Não escrevo para matar o tempo: não escrevo para traduzir pensamentos ligeiros e fúteis, não. Eu escrevo por necessidade moral, física, psicológica e intelectual. Eu escrevo como uma obscuríssima amadora, por isso sejam benévolos para comigo".

Por trás do que pode soar apenas como modéstia excessiva, estava uma mulher branca, da elite letrada, que, nos turbulentos anos iniciais da Primeira República, publicou contos, poesias, romances, artigos e ensaios para jornais. Também foi autora de um volume de verbetes biográficos, "Mulheres Ilustres do Brasil", com que ambicionava "tirar as mulheres de letras brasileiras da barbárie do esquecimento".

Paradoxalmente, Ignez Sabino não conseguiu escapar do contumaz apagamento da memória contra o qual tanto se empenhou: seu nome talvez seja apenas mais um dos listados no rol das mulheres letradas (um pouco mais de uma centena) que assinaram textos de modalidades variadas no Brasil do século 19.

Com a entrada constantemente vetada em instituições acadêmicas sob o pretexto de regramentos sexistas, um caminho possível foi o da atuação como redatoras, editoras e mediadoras intelectuais, em jornais, revistas e periódicos criados para públicos específicos. Somente no século 19, mais de uma centena de títulos de revistas e jornais femininos e feministas circularam no país.

Ali, despontaram vozes como a de Josefina Álvares de Azevedo, jornalista, professora, poetisa, dramaturga, editora e ativista do sufrágio feminino. A fundadora do jornal A Família contestou publicamente o decreto, que chamou de "iníquo e absurdo", de Benjamin Constant, ministro da Instrução que, em 1891, proibiu o acesso das mulheres ao ensino superior.

As histórias de Narcisa, Beatriz, Maria Firmina, Ignez, Júlia, Amélia, Carolina, Josefina nos assombram com a questão: de quais autorias "outras" temos notícia ou acesso em nossa formação? Nessas vozes vetadas e impedidas não encontramos os sentidos para rasurar os traçados com giz ainda riscados no chão do mundo e construir futuros imaginados em que talvez se tornem obsoletas e desnecessárias perguntas semelhantes?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.