Nelson Rodrigues reestreia com 'A Falecida' e 'Vestido de Noiva' e ataca hipocrisia

Peças do dramaturgo, em cartaz em São Paulo, mostram as taras e perversões que cercam a classe média brasileira

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Camila Morgado no ensaio de 'A Falecida', de Nelson Rodrigues Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

Em seu projeto estético, o dramaturgo Nelson Rodrigues implodiu o moralismo católico e desvelou a hipocrisia das camadas populares. Numa jornada de purificação do espírito, seus personagens encaram os próprios medos, assumindo taras e perversões.

Camila Morgado no ensaio da peça 'A Falecida', de Nelson Rodrigues - Karime Xavier/ Folhapress

Por isso, o adultério, os crimes passionais, a linguagem nua e crua, que ainda choca as plateias e suscita polêmicas. As peças "Vestido de Noiva" e "A Falecida", em cartaz em São Paulo, mostram como a linguagem politicamente incorreta concretiza a libertação dos personagens.

Lânguida, a atriz Camila Morgado se aninha no mausoléu onde Zulmira, sua personagem, exulta ao imaginar passar a eternidade. Da boca vermelha, que tem a mesma cor de seus cabelos e do vestido, ela emite grunhidos. Zulmira só geme de prazer com a morte. "O teatro é um lugar diferente para o ator. Aqui, o tempo é diferente, o artista pode estudar mais e errar mais", diz Morgado, que ficou onze anos longe dos palcos.

Com uma sequência de papéis na televisão, a atriz se tornou conhecida pelos trabalhos na novela "Avenida Brasil" e na série "As Brasileiras", ambas produzidas em 2012. "Zulmira representa todas as mulheres que são apagadas pela sociedade. Ela tenta ascender socialmente, mas sabe que vai morrer sem que isso aconteça", afirma a atriz.

Como em muitas obras de Nelson, a história se passa na Aldeia Campista, um bairro perdido entre Vila Isabel e Andaraí, na zona norte do Rio de Janeiro. O subúrbio determina a vida medíocre do casal Zulmira e Tuninho, interpretado por Thelmo Fernandes, que está desempregado. Tuberculosa, Zulmira quer se vingar da sociedade, sobretudo de sua prima e vizinha Glorinha, que não lhe cumprimenta mais.

Planeja, então, um enterro de luxo, com o caixão mais caro do mercado funerário. Tudo seria pago pelo milionário Pimentel, papel de Gustavo Wabner, a quem Toninho deveria procurar para tomar 40 mil cruzeiros e pagar o enterro. Já a mãe de Zulmira, interpretada por Stela Freitas, garante que tudo ocorra como num evento. Todas as mulheres de Aldeia Campista espiam o corpo da falecida.

"A morte é o fetiche dessa mulher. Reprimida, ela opta por seguir o caminho do fanatismo religioso. Vivemos num país que mistura religião e política, então o texto do Nelson dialoga muito com o momento do Brasil", afirma Sergio Módena, o diretor da peça.

Nelson se preocupa em administrar sensibilidades do imaginário popular, estabelecendo uma relação metonímica entre o subúrbio carioca e o Brasil. Aficionado por futebol, Toninho é vascaíno, o que diz muito sobre a sua condição existencial. A peça se desenrola no espaço de uma semana. Para Toninho, domingo, dia de Vasco e Fluminense no Maracanã, é uma miragem. Somente a vitória do Vasco lhe renderia o gozo.

O time representa uma reação à ordem flamenguista, imprimindo uma marginalidade poética aos torcedores. Simbolicamente, ser vascaíno significa assumir um comportamento contracultural – atualmente, o Vasco ocupa a penúltima posição no Campeonato Brasileiro, com 13 pontos, e corre o risco de ser rebaixado.

No que se refere à linguagem, Nelson escreve o "gostoso português do Brasil", escancarando as violências cotidianas, em diálogos rápidos e coloquiais. "A solução do Brasil é o jogo do bicho", diz o dono da funerária. "A filha de 16 anos do bicheiro é um pitel", afirma seu empregado. Para Nelson, purificação não preconiza pureza. Ao contrário, a jornada de seus personagens implica enfrentar a imundície do léxico das ruas.

Na visão de Nelson, pureza é sintoma de repressão. Não à toa, sua obra tem sido contestada por movimentos identitários, que apregoam mudanças na escrita e na fala. "Nelson seria cancelado nos dias de hoje, mas ele reflete uma época", diz Ione de Medeiros, diretora da montagem de "Vestido de Noiva", interpretada pelo Grupo Oficcina Multimédia.

Peça 'Vestido de Noiva', de Nelson Rodrigues, pelo Grupo Oficcina Multimédia - Netun Lima/ Divulgação

O escritor se identificava como reacionário e apoiou a ditadura militar. Só mudou de postura quando seu filho, Nelsinho, foi preso e torturado pelo regime. Assumindo um comportamento contraditório, Nelson foi um pensador libertário. A encenação de "Vestido de Noiva", há 80 anos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurou o teatro moderno brasileiro ao trabalhar o inconsciente em cena, o que exigiu um esforço de cenografia na época.

No enredo, Alaíde, interpretada por Camila Felix e Priscila Natany, é atropelada no bairro da Glória e é levada às pressas ao hospital. Na mesa de cirurgia, relembra cenas de seu passado que, misturadas a alucinações de Pedro, seu marido, e madame Clessi, papel de Jonnatha Horta Fortes, traçam aos poucos o esboço de um crime. Realidade, memória e alucinação dividem o mesmo plano.

Numa cena, a protagonista acusa Pedro de ser frouxo porque não seria capaz de matá-la por ciúmes. O marido se irrita e a agarra pelo braço, jogando-a no chão. "Já disse para não me provocar!", diz, ainda com a palma da mão levantada, como se fosse golpeá-la a qualquer momento.

Na ruptura para a modernidade teatral, o drama psicológico dos personagens ganha uma nova dimensão. Tanto que Medeiros duplicou os personagens em cena para intensificar a sensação de entrada no inconsciente de Alaíde. Na maioria do espetáculo, duas atrizes representam a protagonista, assim como os outros atores encarnam os mesmos personagens ao mesmo tempo. A constituição cenográfica, nesse sentido, funciona como a visão turva de um sonho.

A sensação delirante é revigorada por um enorme telão disposto no fundo do palco, que varia entre a exibição de cenários das lembranças de Alaíde – como um luxuoso salão no Rio de Janeiro ou a festa de seu casamento – e closes dos rostos flutuantes e intrusivos do narrador e de madame Clessi.

No enredo, madame Clessi expõe os paradoxos rodrigueanos. A prostituta, é a responsável por guiar Alaíde pelos seus devaneios, em busca de pistas e trechos de memória. "Ele se dizia reacionário, mas não existe nenhum pensamento reacionário em sua obra", diz Fortes. "Ele se endureceu e criou uma persona. Nelson dizia que é preciso colocar os monstros que temos em cena para não levá-los para a vida real."

Medeiros, que completa 40 anos de direção à frente da companhia, concorda. "A melhor maneira de entender quem é Nelson Rodrigues é assistindo às suas peças."

A Falecida

  • Quando De 18/08 a 01/10; sex. às 21h; sáb. às 20h; dom. 18h
  • Onde Sesc Santo Amaro - r. Amador Bueno, 505, São Paulo
  • Preço R$ 40
  • Classificação 16 anos
  • Autoria Nelson Rodrigues
  • Elenco Camila Morgado, Thelmo Fernandes, Stela Freitas, Gustavo Wabner, Alcemar Vieira, Alan Ribeiro, Thiago Marinho
  • Direção Sérgio Módena

Vestido de Noiva

  • Quando De 17/8 a 24/9; qui. e sex. às 19h; sáb. e dom. às 17h
  • Onde CCBB - r. Álvares Penteado, 112, São Paulo
  • Preço R$ 30
  • Classificação 14 anos
  • Autoria Nelson Rodrigues
  • Elenco Camila Felix, Henrique Torres Mourão, Jonnatha Horta Fortes, Júnio de Carvalho, Priscila Natany e Victor Velloso
  • Direção Ione de Medeiros
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