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Annie Ernaux escreve à irmã morta para provar que está viva

Em seu novo livro, 'A Outra Filha', a Nobel de Literatura desvenda o trauma de ser a menina que não morreu

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Talita Gonçalves

Editora e mestra em estudos literários pela Universidade Estadual de Londrina

A Outra Filha

  • Preço R$ 54,90 (64 págs.); R$ 41,90 (ebook)
  • Autoria Annie Ernaux
  • Editora Fósforo
  • Tradução Marília Garcia

A singularidade de contar a história da irmã morta a partir de sua composição fantasmagórica na intenção de desvendar a si mesma e pensar sua posição de escritora é um dos recursos mais interessantes de "A Outra Filha", de Annie Ernaux.

annie ernaux assiste a palestra com o dedo cobrindo a boca
A escritora francesa Annie Ernaux assiste a um comício político em Paris - Alain Jocard/AFP

Traduzido por Marília Garcia, o livro continua o projeto literário da escritora de imbricar um conteúdo de profundidade existencial e sociológica à forma concisa e direta com a qual escolhe narrar.

Em meados dos anos 2000, a autora foi convidada por uma editora a elaborar uma carta nunca escrita para a coleção "Les Affranchis" e, com a conhecida ousadia de expor literariamente os seus acontecimentos, decidiu se dirigir à irmã morta.

Nas obras da autora já traduzidas no Brasil, a Nobel de Literatura de 2022 trata de temas como o sentimento de não lugar que atinge quem sai das periferias geográficas e econômicas e chega às universidades, a vergonha vivida por mulheres que amargam as consequências psíquicas e físicas de um aborto ilegal ou a crítica pelo exercício da sexualidade —tudo a partir de sua própria história.

Ainda assim, Ernaux diz não se considerar uma autora de autoficção, gênero tão caro aos franceses, por entender que não há nenhuma ficcionalização na sua escrita, já que descreve fatos de sua vida.

Ainda que se ignore a ideia de que toda escrita, e possivelmente toda a história narrada, é em alguma medida ficcionalizada, "A Outra Filha" traz uma verdade importante para a construção da persona de Ernaux: a expressão íntima da fantasia que constitui a sua existência, a maneira como enxerga o mundo e como escolhe se apresentar a ele.

No livro, a autora conta que só aos dez anos soube que antes dela havia outra filha de seus pais, uma menina morta durante uma epidemia de difteria. Ao escutar uma conversa entre a mãe e uma conhecida, Ernaux descobre essa irmã ao mesmo tempo em que é comparada a ela. "Era bem mais boazinha que aquela ali."

A partir da afirmação da mãe, a menina começa a construção mitológica de quem teria sido essa criança que ocupou antes dela o lugar de filha e passa a moldar sua própria personalidade. É naquele instante que a pequena Annie entende não ser única e absorve uma comparação com a qual sempre vai ter que lidar —ela é a filha pior e é a que restou.

À sua maneira objetiva, a escritora apresenta seu contexto histórico e social, oferecendo profundidade ao peso de ser a filha viva. Conta por exemplo que, se a irmã tivesse sobrevivido, ela mesma não poderia ter nascido, já que os pais não teriam dinheiro para bancar duas crianças.

Essa presente ausência da irmã e a imagem angelical em torno de sua personalidade contornam, portanto, a existência da narradora. Além do trauma de passar uma vida comparada à irmã morta, há ali também uma constatação valiosa sobre tornar-se escritora. "Não escrevo porque você morreu. Você morreu para que eu escreva."

Se Marguerite Duras, autora também francesa cujas estratégias narrativas aproximam embrutecimento e intensidade, afirmou que escrever é seu jeito de não morrer, em Annie Ernaux escrever parece ser também a comprovação de sua vida. A autora escreve porque está viva. Escreve porque não é ela a filha morta.

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