Descrição de chapéu Televisão LGBTQIA+

Como a Globo, acusada de cortar beijos gays, recalibra a sua pauta identitária

Emissora tenta agradar tanto conservadores quanto progressistas enquanto contorna crise de audiência

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cenas de novela inseridas em textura de cromo de filme queimado

Ilustração com cenas de beijos gays en novelas da Globo Silvis

São Paulo

O ano era 2014. Há quase dez anos, aplaudidos até por conservadores orgulhosos, Mateus Solano e Thiago Fragoso davam o primeiro beijo gay da Globo, em "Amor à Vida". Era a deixa para que, no ano seguinte, Fernanda Montenegro e Nathália Timberg se beijassem logo no primeiro capítulo de "Babilônia".

O ano é 2023. De um lado, a Globo enfrenta a fúria de parte de seus espectadores no rastro da acusação de ter cortado beijos homoafetivos nas novelas "Vai na Fé" e "Terra e Paixão" e no programa Domingão com Huck. Do outro, assiste à Câmara dos Deputados tentar aprovar um projeto de lei que proíbe o casamento homoafetivo, dez anos depois de o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido essas uniões.

Cena de beijo gay Globo
Mateus Solano e Thiago Fragoso em primeira cena de beijo gay exibida pela Globo, em 'Amor à Vida', de 2013 - Reprodução

O contraste entre as acusações de censura e o avanço do conservadorismo, um retrato da polarização que toma conta do país, aponta para uma tentativa da emissora de recalibrar seu olhar para pautas identitárias, sob risco de perder o público do que é historicamente o seu produto de maior audiência —as novelas.

O ápice da polêmica aconteceu em setembro, no Domingão, quando Carmo Dalla Vecchia reproduziu uma performance em que Madonna beijava Britney Spears e Christina Aguilera. No momento do beijo, em outros dois homens, a direção fez um corte abrupto e voltou a câmera para a plateia, que irrompeu em aplausos.

Em condição de anonimato, um executivo da Globo diz que o motivo do corte não foi a homossexualidade, mas o alto teor erótico com o qual o beijo teria sido filmado, o que a direção hoje considera inadequado para uma tarde de domingo. Essas avaliações, ele afirma, não seguem apenas o manual de classificação indicativa do Ministério da Justiça, mas uma cartilha da própria emissora.

Cortar o final da performance, ou ela toda, poderia causar problemas para a produção do Domingão, que teria de regravar o número. Por isso a direção decidiu mudar a câmera assim que as bocas se tocam, crente de que a decisão não causaria polêmica —tanto que a cena foi compartilhada nas redes sociais da emissora, onde a discussão tomou forma.

A Globo, no entanto, não se manifestou sobre o episódio. Era o que faltava para outros casos de supostos vetos a beijos gays voltarem a inflamar uma batalha de versões entre a emissora e a comunidade LGBTQIA+, da qual Dalla Vecchia participou.

"Fiz a minha parte e não cabe a mim [decidir sobre a exibição]. Tem momentos em que a gente precisa se posicionar do lado certo, e nem sempre a gente se posiciona", disse o ator, que é homossexual, dias depois.

A contenda começou em maio, quando um beijo entre duas personagens do sexo feminino, Clara e Helena, foi cortado de "Vai na Fé". Elas deram um selinho no início da trama, mas de mentira. Não era num contexto de romance, mas para afastar homens que as assediavam.

Um beijaço, com conotação sexual, aconteceria pouco depois. Ele chegou a ser filmado, mas acabou cortado. Um funcionário da emissora que esteve envolvido na produção da novela diz, também em condição de anonimato, que o corte não teria relação com a homossexualidade.

A direção teria considerado que uma das personagens, que era casada, não poderia trair o marido. Ela precisaria se divorciar primeiro, para manter sua índole perfeita, em contraste com a dele, um homem abusivo.

À época, a Globo se conteve em dizer que "toda novela está sujeita a edição, em uma rotina que atende às estratégias de programação ou artísticas". Não ajudou que, no mesmo folhetim, havia outro romance entre personagens do mesmo sexo, Yuri e Vini, que conversavam sobre um beijo que o espectador nunca viu.

Clara e Helena chegaram a encostar suas bocas, mas meses depois, na reta final da novela, quando, na visão de alguns espectadores e críticos, o beijo teria servido mais como uma contenção de danos do que uma escolha natural.

Até ali, toda semana sites de notícias especializados na cobertura de televisão publicavam que a Globo teria cortado mais um beijo gay em "Vai na Fé", uma informação que o funcionário da emissora ouvido em anonimato afirma ser falsa.

Autora de "Vai na Fé", Rosane Svartman não quis se pronunciar. "A gente escreve quase dois meses antes de ir ao ar. Depois, centenas de pessoas trabalham no roteiro, gravam e editam. Não tenho controle", disse ela, em agosto, ao comentar a novela.

Diretor dos Estúdios Globo, da TV Globo e de suas afiliadas, Amauri Soares diz por email que na televisão aberta há "o desafio de falar com este Brasil de muitos Brasis, de muitas visões e gerações", mas considera que a emissora tenha "avançado muito" e que vai exibir beijos gays, porque suas histórias "são sobre o amor, e amor tem beijo".

Muitos especularam que o motivo do corte teria sido o fato de "Vai na Fé" ser uma aposta da Globo para se aproximar do público evangélico, que enfrenta a pecha de ser homofóbico e, nos últimos anos, vinha sintonizando na Record para assistir a novelas bíblicas de matiz conservador.

A avaliação é amparada por uma apresentação da emissora na Rio2C, uma conferência da indústria audiovisual, no ano passado. Na ocasião, Soares disse que, em dez anos, os católicos vão perder para os evangélicos o posto de maioria religiosa no país.

A Globo, para representar o Brasil tal como ele é, precisaria estar atenta à mudança do perfil religioso do país, afirmou Soares.

A crítica, então, esperava que "Vai na Fé" seria uma novela como as da Record, o que não aconteceu. Ao mesmo tempo em que havia o núcleo evangélico, havia o do candomblé, um dos motivos pelos quais a Globo rejeita a tese de que esteja se tornando mais conservadora em termos de costumes sociais.

Mas, para os críticos, não deixa de indicar certo conservadorismo o fato de uma personagem bissexual não poder trair o marido, que também é infiel. É uma visão reforçada por uma ex-funcionária da Globo, também em anonimato, que esteve envolvida na produção de "A Força do Querer", novela que trouxe um personagem trans, Ivan, há seis anos.

Ela diz que, como aconteceu com a personagem de "Vai na Fé", a direção da Globo frisou que Ivan não poderia cometer nenhum deslize e deveria ser uma bússola moral numa família marcada por traições, preconceito e violência.

Quando a novela começou a ser filmada, ela diz, não havia definição se o processo de transição de gênero seria mesmo exibido. Ele dependeria da aceitação do público, o que a Globo mede constantemente, por meio de pesquisas qualitativas.

São essas pesquisas que já levaram, por exemplo, à morte de um casal lésbico, interpretado por Christiane Torloni e Sílvia Pfeifer, em "Torre de Babel", lançada há 25 anos. Levou ainda à mudança de rumo das personagens de Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, que tiveram até o visual de sua casa cenográfica alterado.

Na avaliação do crítico de televisão Mauricio Stycer, colunista deste jornal, "Babilônia" foi um divisor de águas para a Globo, por ter mostrado que não era porque Félix, de "Amor à Vida", tinha sido aceito que as portas do armário estavam escancaradas.

O mesmo Brasil que parou como se estivesse na final de uma Copa do Mundo para se reunir em bares e assistir ao beijo de Félix e seu carneirinho —o único drama daquela novela da qual o público se lembra— dois anos depois levou a Globo ao seu pior índice de audiência para uma trama das nove até então por causa de um beijo lésbico.

"Houve quem defendesse que o espectador tinha de ter sido preparado para essa cena. É uma visão moralista, a de que o público precisa querer ver aquele beijo, ou seja, um beijo homoafetivo não pode existir naturalmente", diz Stycer, que acaba de escrever uma biografia de Gilberto Braga, prevista para ser lançada em janeiro pela editora Intrínseca, em parceria com Artur Xexéo.

Sua afirmação encontra eco no que disse Carlos Henrique Schroder, então diretor-geral da Globo, ao comentar à época o fracasso de "Babilônia". "Há um país mais conservador do que você imagina."

O destino de Clara e Ivan é parecido com o que Walcyr Carrasco tem escrito para Kelvin em "Terra e Paixão", a atual novela das nove. Apesar de explorar em quase todos os capítulos o romance do personagem com outro homem, Ramiro, a novela demorou a exibir um selinho do casal.

A cena aconteceu enquanto eles comiam um prato de macarronada, reproduzindo uma cena de "A Dama e o Vagabundo", em que dois cachorrinhos, um de raça e outro vira-lata, que vivem um romance proibido, tocam os lábios quando o fio do macarrão que dividem termina. "Se eles vão se beijar? Assista à novela", diz Carrasco, por e-mail.

A referência, embora pareça simpática, reforça o papel ao qual personagens da comunidade LGBTQIA+ são historicamente relegados na indústria audiovisual —o caricato, sem muita profundidade emocional, que é feito para fazer rir.

Também foi assim com Crô, que Marcelo Serrado interpretou em "Fina Estampa", e com Téo Pereira, que Paulo Betti viveu em "Império". Ambos enfrentaram uma espécie de emasculação e foram privados de uma vida sexual ou de romances maduros ou complexos.

"As pessoas têm o direito de ser como quiserem, então essa história de os gays ‘pintosos’ —para usar a palavra maldita— serem estereótipos também é uma forma de ver as coisas com preconceito", afirma Aguinaldo Silva, que escreveu "Fina Estampa". "Mas o romance entre gays é de fato tratado com cuidado."

Segundo a revista Veja, um beijo apaixonado entre Kelvin e Ramiro, de "Terra e Paixão", teria sido filmado e cortado a mando da direção. A Globo nega a afirmação, assim como os intérpretes do casal. Seja verdade, seja mentira, fato é que a relação dos dois, assim como a de Clara e Helena em "Vai na Fé", representa uma mudança na maneira como a emissora representa a homoafetividade.

Não foram só beijos, afinal, que tinham se tornado comuns na última década. Em 2016, a Globo exibiu uma cena de sexo entre dois homens em "Liberdade, Liberdade", uma minissérie de época. Dois anos depois, cenários antigos também serviram de pano de fundo para carícias homoafetivas em "Orgulho e Paixão".

A emissora ainda levou um beijo lésbico à faixa etária vespertina de "Malhação - Viva a Diferença", que acabou há cinco anos, e no mesmo dia em que o STF tornou crime a homofobia, em 2019, exibiu um beijo gay na série "Sob Pressão", como se estivesse vestindo a camisa da causa.

Pesquisadores e críticos de televisão ouvidos pela reportagem atribuem as mudanças a um momento delicado da Globo. Nos últimos anos, a emissora foi tachada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro como o principal símbolo do inimigo em comum de seus eleitores —isto é, de quase metade do país.

Eles atribuem a situação ainda ao novo cenário do audiovisual brasileiro, em que serviços de streaming põem em risco a onipresença da TV aberta e, em especial, o domínio histórico da Globo na teledramaturgia.

Com exceção de "Pantanal", suas novelas do horário nobre enfrentam quedas sucessivas de audiência. É uma concorrência que se acirrou, aliás, por ocasião do beijo lésbico de "Babilônia", na opinião de Stycer, o jornalista. "A Record, por exemplo, estava começando a exibir ‘Os Dez Mandamentos’, e o SBT fez uma campanha dizendo que ‘Chiquititas’ era uma novela ‘para a família’. A Globo, em plena comemoração de 50 anos, se sentiu muito atacada."

Silva, roteirista de clássicos da TV como "Tieta", "Pedra sobre Pedra" e "A Indomada", que dizia ser contra beijos gays em novelas, mudou seu posicionamento, mas reitera que "a novela é um veículo para 30 milhões de espectadores, então é preciso cuidado". "Mesmo não havendo cenas românticas ou na cama entre homossexuais, só de existir essas relações já é positivo. Talvez faça o público ver com naturalidade. Não se pode radicalizar", acrescenta ele, que deixou a Globo há cinco anos.

O canal, diz o executivo em anonimato, não proíbe seus autores de escrever sobre nenhum assunto, mas fornece dados sobre a população para que eles os usem a seu favor. Eles próprios têm cuidado com temas delicados, acrescenta, porque querem que suas novelas tenham sucesso.

Entre o abre e fecha das portas do armário, uma série de tensões se arrasta sem fim —aquela entre o casal da vez da teledramaturgia, Kelvin e Ramiro, a dos espectadores que anseiam por ver os dois se beijando, e também a dos que esperam não ver nada disso. Parece ser um espelho límpido do próprio Brasil.

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