No escuro, ouvimos sons metálicos de grades e fechaduras. Uma fotografia de baixa resolução se revela aos poucos. Quando o título do filme assume a tela, ouvimos uma voz infantil —"mama". É assim que a chilena Tana Gilbert nos convida a refletir sobre a maternidade na prisão no seu primeiro longa.
Depois de "I’m Still Here" e "Ninguna Estrella" —ainda estou aqui e nenhuma estrela—, curtas documentais de 2017 e 2022, nesta ordem, a diretora retoma o tema da maternidade, que tem permeado as suas produções.
"Malqueridas" levou o prêmio de melhor filme na Semana Internacional da Crítica do Festival de Veneza deste ano e está agora em exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
O documentário é todo filmado com celulares por mulheres encarceradas. Os vídeos de baixa qualidade foram coletados pela diretora e reunidos para ilustrar uma narração em primeira pessoa.
Não é o relato de uma das detentas que vemos nas imagens, mas as histórias de todas elas. Suas experiências aparecem em uma síntese narrativa, a revelar a humanidade insurgente que desafia as reduções do cárcere. Não está em pauta o passado dessas mulheres. Seu presente e suas incertezas protagonizam os fragmentos das vivências de cada uma das personagens.
Enquanto acompanhamos a narração, a emendar fotografias e vídeos amadores costurados abruptamente, testemunhamos o carinho das mulheres com seus filhos e a intimidade forjada em vínculos afetivos de amizade, namoro e apadrinhamento.
A falta do filho encontra alento no romance com uma colega de cela. O desamparo da família e do ex-companheiro é confortado por novas mães e filhas de prisão, que oferecem e recebem acolhimento, orientação, colo.
São registros que se perderiam com a sua descoberta pelos agentes carcerários, recuperados para contar como as relações extramuros penitenciários, com os filhos e a família que os acolhe, orientam aquelas que se estabelecem no interior das grades. E o conflito potencial entre ambos os mundos, mediado pelos guardas.
Estão ausentes a violência costumeira em produções latino-americanas sobre cadeias. O afastamento de mãe e filho ocupa esse papel. Não para advogar por políticas públicas ou direitos humanos, mas para perscrutar o drama do tempo que passa sem passar em uma relação marcada pela ansiedade do reencontro.
Contamos os dois aniversários do bebê da narradora ainda na prisão. Depois, o seu afastamento passa a se medir em datas comemorativas e grandes acontecimentos, o Ano-Novo, o aniversário da protagonista, a liberdade do pai da criança, as mudanças na família. Como se os vídeos recebidos com a ajuda de um agente penitenciário estivessem suspensos no tempo.
O cotidiano de ausências se descortina nos preparativos para a visita dos filhos, na festa de aniversário dos bebês, na catarse libertadora da dança. Experimentamos a sensação de que tudo passa muito rápido, em claro conflito com a demora da chuva e da solitária. No pátio, em dias cinzas, o tempo se esvai. Os filhos crescem a cada notícia que demora a chegar. Nada volta.
Com "Malqueridas", Gilbert oferece uma sociologia da maternidade no cárcere. Na voz da protagonista e nas imagens testemunhais, percorremos as interações no aqui e agora da falta. Nos corpos das mães, os corpos ausentes dos filhos. No cálculo para a condicional e no arranjo dos objetos pessoais dentro das celas, o bebê que está crescendo lá fora.
Ainda assim, não se trata de um relato piedoso sobre o cárcere feminino. A reinvenção possível da vida aparece na solidariedade de quem convive entre as mesmas celas e pátio. Os sonhos e o cuidado sugerem uma aposta quase ingênua em um futuro melhor. Sempre em compasso de espera.
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